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Um dia quase perfeito

Atualizado: 4 de mar. de 2021

Acordei cedo, antes do relógio despertar, liguei o rádio e fiquei um pouco na cama me espreguiçando, tocava “Bom dia, anjo” do Jairzinho Oliveira — eu adoro esta música. Depois que a música acabou, levantei, escovei os dentes, barbeei-me e tomei um banho quente e demorado, aproveitando também, para aliviar-me, já que havia acordado com uma ereção eruptiva. A água estava na temperatura ideal, morna, absolutamente gostosa e relaxante. Ao sair do banho, coloquei uma água para fazer o café e fui me vestir. A roupa estava devidamente passada e com um cheiro gostoso de amaciante. Quando a chaleira apitou, preparei um café fresquinho e coloquei na mesa, junto com a geleia, pão integral, bolacha, leite, cereal e iogurte. Derramei café em minha camisa, mas tudo bem, imediatamente a troquei e terminei meu café da manhã. Ao desfazer a mesa do café, abri a janela, e lá fora estava fazendo um lindo dia; o sol estava forte, o céu com poucas nuvens e uma suave brisa tocava meu rosto. Sob minha janela estavam diversos pombos, peguei algumas migalhas de pão e joguei para eles. Peguei meus livros, sacola, chave e tranquei a porta. Fui descendo e encontrei o vizinho do 301, que molhava suas plantas, enquanto a esposa, cantarolando, preparava o café.

— Bom dia meu jovem, já vai pra batalha, né? — disse animado.

— Bom dia, já sim. — respondi, com um sorriso.

— Vá com Deus, meu filho.

— Obrigado. Até!

Quando saí do prédio, aqueles pombos que estavam lá embaixo voaram e foram para os fios elétricos, um deles acabou acertando minha camisa, eu olhei para ele e ele me olhou como quem pede desculpas. Subi rápido e troquei novamente a camisa, acelerando os passos, pois estes contratempos me fizeram ficar um pouco atrasado. Fui para o ponto de ônibus, e pouco tempo após eu chegar, o ônibus veio e estava vazio. Dei ao cobrador uma nota alta para pagar a passagem.

— Pô irmão. Não tem outra aí não? Acabei de pegar viagem.

— Não irmão, mas só vou saltar lá no Comércio, pode ser?

— Pode sim. Por favor, aguarda aí, que assim que tiver seu troco te aviso.

— Sem problemas. Obrigado e vá desculpando aí.

— Que nada.

No meio do trajeto, subiu ao ônibus um cara todo eufórico. Esbanjava felicidade, falava em voz alta, que acabara de ser pai. Estava muito alegre e queria que todos soubessem, que era o cara mais feliz do mundo naquele momento.

Desci no ponto, depois de pegar o troco na mão do cobrador. Agradeci a gentileza e paciência e desejei, tanto a ele quanto ao motorista, um excelente dia. Eles retribuíram. Ao parar no sinal para atravessar, já passava das oito e não tinha nenhum menino de rua no semáforo, pedindo dinheiro, ou vendendo coisas; os carros respeitavam os sinais e praticamente não buzinavam; uma senhora sorridente, dentro de uma Kombi, vendia lanches; um jovem ajudava um senhor cego a atravessar a rua; as pessoas se cumprimentavam respeitosamente. Atravessei a rua, quando o sinal ficou vermelho, andei alguns quarteirões com os passos apressados, até que cheguei ao prédio no qual trabalho. O porteiro abriu a porta e me desejou bom dia; a recepcionista me deu um belo sorriso; o zelador limpava os corredores, cantando feito doido e falou para que eu tivesse cuidado, pois o chão estava bastante escorregadio. Quando cheguei ao escritório todos estavam fazendo seu serviço na maior descontração, rindo e conversando sobre o final de semana. Todos me deram bom dia e uma colega de trabalho me trouxe um café, sem que eu pedisse. Fui até a sala do chefe, me desculpar do pequeno atraso.

— Seu Monteiro, bom dia. Me atrasei um pouquinho, foi...

— Sem problemas, meu jovem, o importante é que chegou e que vai produzir... Na hora do almoço, se não se importar, quero almoçar com você e os demais do setor para discutirmos algumas diretrizes do novo projeto. – disse arrumando uns papéis.

— Tudo bem!

— Tenha um bom dia, meu jovem.

Voltei para a mesa de trabalho e lá passei o dia, em um clima muito bom. As horas passaram voando. Ao ir embora, me despedi dos colegas, que insistiam em irmos tomar uma cervejinha, para discutir o discutido no almoço e resenhar sobre o fim de semana, mas não estava a fim. Bati o cartão e fui para o ponto de ônibus. No caminho até o ponto, estava viajando, com uma sensação boa, pois havia tempo que não tinha um dia tão legal. Pensava como tinha sido bom e produtivo. Andava tão pensativo e aéreo que acabei atravessando a rua com o sinal aberto, então, fui surpreendido por uma buzina bem alta. O motorista abriu o vidro e disse: — Ou irmão, o sinal está aberto, toma mais cuidado! Buzinou novamente, um “até logo”, e seguiu. Realmente, aquele dia estava sendo especial. Foi aí que acordei...

Acordei atrasado, pois o despertador não funcionou ou se funcionou, não escutei. Liguei o rádio e fiquei um pouco na cama, na tentativa de melhorar um pouco aquele mal-estar, estava com uma ressaca desgraçada e muito enjoado. No rádio estava tocando uma daquelas músicas brasileiras, que se corre o risco de contrair uma DST, só de escutá-las. Antes que aquilo terminasse, desliguei o rádio e gradativamente, feito uma ereção senil, levantei, pois minha cabeça doía e o teto, por ora, queria me alcançar. Escovei os dentes com um resto de pasta que consegui retirar do tubo, após cortá-lo. Não fiz a barba, pois não encontrei o barbeador, depois fui ao chuveiro, rezando para que tivesse água, mas como sempre, não tinha. Tive que descer para pegar água no tanque. Tomei um banho “de gato”: gelado e de cuia. A água estava insuportável. Ia aproveitar a água que sobrou para colocar os lençóis de molho, já que havia tido uma polução noturna e acordei todo melado, mas não tinha sabão em pó. Ao sair do banho, coloquei o resto do café do dia anterior para requentar. Enquanto estava no fogo, procurava uma roupa, sem muito sucesso. As que não estavam tão amarrotadas estavam sujas. Escolhi a menos pior, sacudi e vesti. Antes que o café pudesse realmente esquentar, o gás terminou. Coloquei aquele líquido morno e quase azedo à mesa, junto com o resto de pão dormido que havia na geladeira e a última dose de conhaque da garrafa. Derramei café em minha camisa. Encontrei outra, também menos pior, porém furadinha nas axilas. Terminei o “café da manhã” e abri a janela para fumar um cigarro. Lá fora fazia um dia horrível, tudo nublado, não havia resquícios de sol, sem contar o frio que fazia. Sob minha janela havia pombos que tratei imediatamente de jogar água naquelas pestes. Não servem para nada, só para fazer sujeira e transmitir doenças. Peguei meus livros, sacola, chave e tranquei a porta. Fui descendo e encontrei o vizinho do 301, que espancando sua esposa, me perguntou:

— Tá olhando o quê, mané? Quer apanhar também?

Como a proposta não me interessava, apressei-me e quando saí do prédio aqueles pombos que estavam lá embaixo, voaram e foram para os fios elétricos, um deles acabou cagando na minha camisa, — na segunda menos pior e furadinha nas axilas — olhei para ele e ele me olhou, como quem diz: “na mira!”. Imediatamente busquei uma pedra e tentei acertá-lo, mas nem passou perto e quase acerto a janela da vizinha do 103. Subi rápido e troquei novamente a camisa. Agora por uma fedida, amarrotada e esgarçada. Acelerei os passos, pois os contratempos me fizeram ficar ainda mais atrasado. Fui ao ponto de ônibus correndo e ao chegar, levei um enorme chá de espera. Só depois de 40 minutos o ônibus veio e absolutamente lotado. Subi com muito trabalho e dei ao cobrador uma nota alta para pagar a passagem. Depois de vários murmurinhos, ele retrucou:

— Pô, meu irmão, aí tá foda, num sabe que acabei de pegar viagem agora, e ainda vem com esta nota alta. Pode aguardar aí, viu! — e continuou a resmungar.

Fiquei aguardando aquele animal, denominado cobrador, dar meu troco enquanto era imprensado de todos os lados por outros passageiros. Nenhum desgraçado se oferecia para segurar as coisas que tinha em mãos. No meio do trajeto subiu ao ônibus um cara todo sujo, fedendo, com dois meninos catarrentos no colo, pedindo pelo amor de Deus que o ajudasse, pois ele já tinha dois filhos, tinha câncer, HIV, Hepatite A, B, C, Z e que a mulher dele agora estava grávida de gêmeos. Quando faltava menos de 300 metros para o ponto onde salto, foi que o cobrador resolveu entregar meu troco em dois punhados de moedas. Apertei a sirene e tentei, o mais rápido possível, passar para frente na tentativa de saltar ainda em meu ponto

— Pêra aí, motô! – gritei.

De nada adiantou meus apelos, pois ele arrastou, mesmo sob os avisos de outros passageiros, de que havia gente para descer. Saltei dois pontos depois e quando desci perguntei ao motorista.

— Oh, seu filho da puta! É seu pai que está aqui é?

— Não, que meu pai não é corno nem viado! — respondeu, arrastando o ônibus, quase me derrubando.

Ao parar no sinal para atravessar, como costume, diversos meninos de rua e vendedores ambulantes estavam ali pedindo e vendendo suas mercadorias; os carros insuportavelmente, invadiam os sinais e buzinavam; mendigos e catadores buscavam seu alimento e sustento, nas latas de lixo; um senhor cego, pelejava para atravessar a rua, sem que alguém o ajudasse; as pessoas, de forma mal educada e grosseira, passavam umas pelas outras se batendo feito animais, sem, ao menos, pedir desculpa. Atravessei a rua quando o sinal ficou vermelho, e ainda assim, um motoqueiro que estava em “sua razão” quase me atropela. Andei alguns quarteirões com os passos apressados, pois estava superatrasado, até que cheguei ao prédio no qual trabalho. O porteiro que estava sentado na cadeira com os pés sobre a mesa, para não sair de sua confortável posição, jogou a chave para que eu mesmo pudesse abrir o portão; cumprimentei a recepcionista que só fez me olhar por sobre os óculos; quando caminhava pelo corredor, para ir até o elevador, escorreguei no molhado, pois o zelador enquanto resmungava pelo salário atrasado, lavava o chão e não colocou as placas de aviso ou avisou que o chão estava escorregadio, e ainda por cima, caiu na risada, mostrando aquela gengiva que só tinha dentes nas laterais. Quando cheguei ao escritório todos estavam fazendo seus serviços calados e de caras feias, dei um bom dia alto, para todos, e não obtive qualquer retorno. Uma colega estava indo pegar café, então pedi a ela que, por favor, pegasse um café para mim, enquanto ia até a sala do chefe para me desculpar pelo atraso.

— Seu Monteiro, bom dia. Me atrasei um pouquinho, peço desculpas, mas...

— Mas nada! Eu não quero saber de seus problemas, seus problemas são seus e não meus. Saiba que vai ser descontado e pra compensar não vai tirar almoço. Da próxima vez, vai pro olho da rua, agora saia de minha frente e vá procurar o que fazer. E vê se tem um pouco mais de compostura e etiqueta e venha trabalhar mais bem vestido e barbeado.

Voltei para a mesa de trabalho, que não tinha café algum, e lá, passei o dia trocando ofensas indiretas com meus queridos colegas. O dia estava tão ruim que as horas custaram a passar, e quando chegou o fim do dia, estava tão alucinado para ir para casa, que acabei esquecendo de bater o cartão de ponto. No caminho até o ponto, estava viajando, com um cansaço muito grande. Pensava no sermão que ia levar por não ter batido o cartão, as contas que tinha que pagar, a improdutividade daquele dia e todas as outras coisas que tinham, para atormentar meu juízo. Andava tão pensativo e aéreo que acabei atravessando a rua com o sinal ainda laranja, então fui surpreendido por uma buzina bem alta. O motorista abriu o vidro e gritou: — SAI DA FRENTE FILHO DA PUTA. CARRO TAMBÉM MATA VIADO!

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