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O prazer do vício

Atualizado: 11 de ago. de 2022

Depois de dezenas de tratamentos, três internações, mulheres perdidas, contabilidades frustrantes, adesivos, gotinhas mágicas, gomas de mascar salvadoras, chás, sucos, três princípios de tuberculose, campanha incessante de familiares e a perda de dois amigos com enfisema e câncer, resolvi — mais uma vez —, após mais de 30 anos dedicados ao cigarro, no meu aniversário de 45 anos, parar de fumar. Sim, só não sei pela qual vez corresponde essa minha atitude. Fumo desde moleque, quando, no fim da vida, já sem forças, meu avô me oficializou como seu fazedor de cigarros particular. Passava as manhãs sentado no chão da cozinha cortando fumo e enrolando cigarros para sua morte e fumando seus cotocos. Eu me sentia importante fazendo aquilo. De fazedor para terceiros a fazedor para consumo próprio, aos 12 anos já roubava fumo na venda de Seu Zaqueu. Aos 14, meu pai me pegou fumando escondido na cisterna, me deu uma surra e disse imperativo e irritadíssimo: "Filha da puta miserável, filho meu não faz essas coisas. Se quiser fumar, fala, mas roubar o Zaqueu é descaração demais!". Daí por diante, tornei-me uma massa fedorenta de fumaça que eu mesmo fabricava, até vir para a cidade e comprar cigarros industrializados. Numa época, cheguei a fazer coleção de caixas de cigarro. Num dos meus tratamentos, joguei tudo fora. Que arrependimento depois, era muito legal vê-las penduradas na parede. Tinham mais de cinquenta tipos diferentes.

Lembro-me do dia que Marquito, meu amigo de infância, veio, às pressas, me tirar de cima do pé de araçá, chacoalhando os braços e dizendo de forma embaralhada: "Corre, Bezerra, corre, que tua casa tá pegando fogo!". Quando cheguei na porteira que avistei aquele fumacê, adentrei para resgatar minha família, num ato heroico, mas lá estavam todos sentados, gargalhando, bebendo e fumando. Era só uma reunião de toda minha família com amigos, que se juntaram para inaugurar a nossa primeira TV, mais de trinta pessoas numa salinha, fumando, causando seus próprios incêndios.

Na cidade grande, peguei a época em que fumar significava status, então gastava todo meu dinheiro em cigarros, Coca-Cola e calças de marca americana. Quando passei a estudar jornalismo, a coisa se intensificou. Ôh profissão ingrata, tudo falta, menos cafezinhos em copos plásticos e cigarros. Era mais uma coisa para eu colocar a culpa do vício. Trabalho, mulheres, amantes, filhos, estresse, impostos, tudo era culpado pelo meu vício. Perdi a conta de quantos amigos e mulheres perdi por mandar tomarem em suas respectivas reticências ao tentarem me fazer parar de fumar com estatísticas, rezas e conselhos.

Nunca usei a bebida como desculpa para fumar, "só fumo quando bebo", isso comigo não funcionava. Comigo, acho que era o contrário. Depois de frequentar clínicas e ambientes com viciados, nas mais diversas coisas, passei a observar o ato do prazer dos vícios, sim, o prazer como vício, e não o vício como prazer ou sustentação para algo. Observei obesos devorando seus hambúrgueres encharcados em óleo, com litros de refrigerante; putas legítimas, que emprestavam suas carnes sem cobrar diretamente pelo “serviço”; colegas de trabalho escrevendo matérias inteiras em guardanapos, sabendo que nunca seriam publicadas; alcoólatras insaciáveis, virando copos; e muita pouca gente curtindo seu cigarro, como se curte um baseado ou qualquer outro vício, apenas fumavam, por fumar, um atrás do outro, por estarem felizes, tristes, nervosos, ansiosos, depressivos, esperando, sendo esperados, insônia... e o prazer? Cadê? Foi assim que, mecanicamente, às 05h45m do dia de meu quadragésimo quinto aniversário, esmurrei meu despertador, fazendo-o parar de berrar, ainda no escuro, e, sonolento, passei a mão na bancada, cujo abajur foi quebrado por este hábito. Peguei o isqueiro, acendi para procurar o cigarro, achei-o, segurei entre os lábios e não o acendi. Naquele instante, percebi que eu não queria fumar, assim como não queria acordar às 05h45m para ir trabalhar, era um hábito mecânico que encaixei em minha rotina. Não podia ser tão burro assim, todos meus outros hábitos e obrigações me dão algo em troca, meu trabalho me dá algum prazer e garante meu sustento, minhas bebedeiras me dão coragem para fazer o que não faria sóbrio e me garantem boas gargalhadas ao lado de amigos, meu vício em café é magnífico, saboreio cada gota dele — mesmo sendo péssimo o da redação —, por que o maldito cigarro não podia me proporcionar algo?!

Virei para o lado, guardei o cigarro e dormi até quando tive sono, cheguei atrasado ao trabalho, tomei um café espresso delicioso, com broa de milho na padaria, escrevi o que quis, fiquei excitado com as pernas da estagiária e, lá pelas 12h, após o almoço, tive vontade — vontade! — de fumar, peguei meu isqueiro, um cigarro e fui para uma pequena sacada da redação, que foi apelidada, de "Brigada de Incêndio". Lá, atipicamente, sentei-me no chão, sob olhares curiosos de colegas de trabalho, dobrei a bainha da calça e acendi o cigarro, não um cigarro qualquer, mas meu cigarro, o qual eu queria fumar, não estava triste, deprimido, nervoso, feliz ou calmo demais. Apenas normal. Acendi-o e, na primeira tragada, senti um enorme prazer percorrendo meu aparelho respiratório, demorei uns dois minutos para acabar aquele maravilhoso cigarro, quase o triplo do tempo em que fumaria aquele mesmo cigarro, sem ao menos, saber que fumava. Um ato mecânico, prejudicial e pior, sem nenhum prazer. Dali em diante, passei a acrescentar prazer ao meu vício. Mudei de marca de cigarro, experimentei inúmeras nacionais e importadas, que meu dinheiro pôde pagar, descobri o charuto, estudei o processo de fabricação dos produtos tabagistas, adquiri uma pequena máquina caseira de enrolar cigarros, com a qual me divirto muito, criando misturas com tabacos, ervas medicinais e aromáticas que experimentei e conheci em minhas pesquisas.

Atualmente, enrolar cigarros é um dos meus hobbys favoritos, consumo um máximo de duas carteiras por semana, quando antes consumia cerca de dez, e, a cada tragada, sinto uma sensação incrível. Fiz com que algo que me fazia mal — e ainda faz — me faça bem ou menos mal. Troquei o ato mecânico pelo ato consciente. Fui do vício vazio e opaco ao nocivo prazer calmante, preenchedor e enérgico.

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