top of page
Foto do escritorInFeto

"Pão com ôxe"

Atualizado: 11 de ago. de 2022

Infeliz o filho que não segue o conselho de mãe. Sou a prova viva disso. Cresci com uma paixão acirrada por música e, na mesma proporção, a preguiça para estudar. As únicas formas de estudar eram: em troca de doces, cordas para o meu violão, embaixo de porrada ou quando já estava na recuperação, sob ameaças de um Natal sem presentes, por parte de meus pais, que diziam ter um canal exclusivo de comunicação com Papai Noel. Isso foi até eu descobrir que o tal velhinho do polo norte era um senhor que morava no bairro de Mussurunga, mais precisamente em minha casa.

Depois de concluir o primeiro grau dessa forma, o segundo grau só saiu após dois supletivos e algumas notas trocadas na caderneta. Hoje, aos 25 anos, tenho como profissão: músico. Toco praticamente todos os instrumentos que possuem braço e cordas, mas me aperfeiçoei no baixo, o que não adiantou absolutamente nada, pois continuo duro e sob os sermões de minha mãe, que não perde a oportunidade de falar:

— ... Eu disse para você estudar, eu avisei, não quis me escutar!

Mas não adiantava nada, não tinha como voltar atrás, a minha preguiça de estudar continuava a mesma, e tocar é o que sei e o que gosto de fazer.

Toco na noite de Salvador em restaurantes, bares, lanchonetes, bregas, praças e onde me pagarem. O dinheiro é bem pouco, mas a diversão e a irritação são grandes. Já toquei e toco em algumas bandas fixas, que sei que não irão a lugar algum e faço freelancer, que é minha maior fonte de renda. Num desses esquemas, fiz teste e passei para tocar numa banda baile. Iriam ser doze shows pelo interior da Bahia, era época de eleição, época de faturar. Essa banda era formada por músicos experientes e calejados, com média de idade de 43 anos. Logo, eu era a mascote e a diversão da banda. Não demorava muito para eu escutar:

— Você que tá mais novo do que eu, por favor...

Eu não ligava, a turma era boa, e aquele era o maior trabalho que havia pegado em meses. Em um dos nossos shows, fomos tocar numa cidade chamada Bonito, o que era mentira, pois a cidade era bem feiinha e, pouco antes de tocarmos à noite, chegou aos nossos ouvidos que o contratante tinha fama de caloteiro. Começamos a ficar preocupados, pois precisávamos daquele dinheiro para colocar combustível na perua e chegar até o destino dos outros shows. Na verdade, cada um de nós tinha um pouco de grana, proveniente dos outros shows, mas era como se não tivéssemos, pois esses gastos não tinham que sair do nosso cachê e sim de um valor já acertado, justamente para ser gasto em coisas daquele tipo.

— Esse negócio tava bom demais, oito shows seguidos sem nenhum calote... sabia — disse o trompetista.

— Pior que preciso comprar cabos e não vou tirar da grana que já tenho. Por mim, mete o playback lá, e que se foda — disse o tecladista.

— Bem que Sandrão falou que este cara só pagava em "pão com oxe" — disse rindo um dos vocalistas, arrancando gargalhadas dos demais.

— Lembra aquela vez, Juca, que ficamos em Natal por quase dois meses, só com "pão com oxe"? — disse o baterista.

— Nem lembra, ali a coisa foi braba mesmo. Se não é o Vadão para encarar a mulher da mortandela, nós tava lascado — respondeu o tecladista.

— Vamos parar a gracinha? Só porque a criatura só tinha sete dentes, e quatro podres, vocês ficam zombando de mim. Eu salvei nossas vidas — disse Vadão, enquanto todos gargalhavam.

Eu tocava na noite fazia uns seis anos e, até então, nunca tinha escutado aquela expressão ou gíria “pão com oxe”. Então, perguntei:

— Que zorra é "pão com oxe"?

— Ah! O mascote não sabe o que é "pão com oxe" não, é!? É o que mais os contratantes usam para pagar aos músicos — respondeu Vadão, já caindo na risada.

— Nunca ouvi falar.

— Logo, logo, vai saber. Você tem sorte em não conhecer, mas, pelo jeito, parece que vai ser hoje — disse outro vocalista, passando gel no cabelo.

A hora do show chegou e, mesmo sob a suspeita de sermos pagos com o tal "pão com oxe" ou levarmos o cano, subimos ao palco. Nada de especial, fizemos cinco músicas a menos do que o previsto, os vocalistas miraram as mulheres que queriam pegar, o violão estava desafinado e a qualidade do equipamento de som era terrível. Eu não conseguia parar de pensar no tal “pão com oxe”. Depois que terminamos nosso trabalho, voltamos para a sala mofada, que alguém insistia em chamar de camarim. Guardávamos instrumentos e trocávamos de roupa quando alguém bateu na porta e entrou, com uma bandeja cheia de sanduíches e uma sacola com latas de refrigerantes e cervejas, quentes e da marca mais vagabunda possível.

— Olha aí, garoto, o "pão com oxe"! — disse o trompetista.

— Isso aí? — disse olhando pra bandeja. — Não entendi a piada

— Sim, ele mesmo. Pelo menos, veio com refrigerante, cerveja e metade do cachê — disse o guitarrista, sacudindo um pequeno bolo de dinheiro. Quando, curioso e faminto, peguei o pão e separei as bandas, abrindo-o ao meio para ver do que se tratava, disse:

— Oxe!

Naquele exato momento, todos gargalhavam às alturas, alguns até se entalaram de tanto rir. A dentadura do tecladista voou, caindo no chão e o baterista desabotoou as calça para liberar a barriga que doía de tanto rir.

— Tá vendo, garoto, isso aí é “pão com oxe”. É aquele pão que não tem praticamente nada dentro, não tem ovo, queijo, carne, presunto, nada. Malmente uma amostra grátis de manteiga ou uma fatia de queijo tão fina, mas tão fina, que chega se vê o outro lado. Daí você abre, olha e fala: "oxe!".

Triste o filho que não escuta a mãe. Se ela estivesse lá naquele dia, certamente diria:

— Eu disse para você estudar, eu avisei, não quis me escutar!

Lembro que a vontade que tive foi de sair dali direto pra faculdade, mas, como sabia que a vontade ia passar logo, só me restou cair na gargalhada e comer uns “pães com oxe”, tomando umas cervejas quentes e agradecer por mais aquele aprendizado.

7 visualizações

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page