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Não vou ao enterro!

Atualizado: 11 de ago. de 2022

"Não vou ao enterro!" — era a primeira coisa que se escutava e que dizia Zeraldo ao ser comunicado sobre a morte e, consequentemente, o enterro de alguém. E isso não era, pode-se dizer, um "privilégio" de alguns, não, era uma regra expressamente genérica. Fosse quem fosse o defunto: um simples conhecido, colega de trabalho, amigo e até mesmo familiares, durante toda a sua vida, não compareceu a nenhum enterro. Foi assim com o pai, que falecera há sete anos. Junto com as irmãs, providenciou tudo para o enterro do velho, mas, na hora do vamos ver, não compareceu. Ficou durante toda a cerimônia sentado no “De frente pro futuro”, um conhecido boteco em frente ao cemitério, guiando quem chegava e bebendo suas dores com cachaça. Foi, assim, também com Zé Pedro, seu irmão, e outros companheiros de farras e trabalho. Sua teimosia, superstição, medo, ou seja, lá o que fosse, era tão aguçada que terminou por ganhar fama de “porteiro de enterro". Como ele mesmo dizia: "enterro só para o meu e contra minha vontade. Isso se eu não me retar!". Zeraldo tinha pavor a qualquer coisa que fizesse associação à morte, nem enterro de novela e filme conseguia ver. Cadáver, então, nem se fala! Sempre que alguém morria em via pública, na cidade, ficava dias sem passar pelo lugar. “Defunto é uma coisa muito feia” — dizia. Dizia também que, se tivesse certeza de que não doesse, queria ser cremado, mas, sempre que pensava em seu corpo evaporando nas chamas, se aterrorizava e logo mudava de pensamento e assunto.

Numa manhã de segunda-feira, Zeraldo não apareceu para trabalhar, era um dia típico de outono. Na redação do jornal, caras marcadas de um final de semana de farra e cansaço. Homens com ressaca, mangas dobradas, gravatas frouxas, cigarros e cafés em copinhos plásticos por todo canto. Por volta das 10h, sentiram realmente que havia algo errado. Ele não costumava se atrasar e, quando acontecia, avisava. Ligaram para sua casa, mas chamava e ninguém atendia, ligaram para amigos comuns que não trabalhavam na redação e para parentes, e nada, ninguém sabia do seu paradeiro. Ao meio-dia, o pessoal trocou o almoço por notícias frescas do companheiro e foram numa espécie de mutirão a casa dele. Lá, depois de tocarem a campainha por alguns minutos, sem resposta, resolveram arrombar a porta, temendo que algo pudesse ter acontecido ao amigo. Depois de pôr a porta abaixo, adentraram na casa e constataram que realmente o pior havia ocorrido. Zeraldo estava deitado como se num sono profundo estivesse. Com seu pijama branco de listras verdes, meias furadas, bitucas de cigarros no cinzeiro ao lado da cama, uma xícara de café gelado e Francisco Alves a cantar no rádio de pilha sobre o travesseiro ao seu lado. Todos ficaram abalados com a sua morte, apesar da bebida e do cigarro, era um homem saudável, de bons hábitos alimentares, dormia cedo e caminhava todas as manhãs. Bom amigo, pacato, tranquilo, divertido. Só tinha o defeito de não dar o último adeus a quem conheceu em vida e só parar de beber depois que tentava ficar nu no bar. Sempre o convenciam de que não era uma boa ideia e o conduziam para casa. Ele ia sem hesitar.

Parentes, amigos e toda a redação providenciaram o funeral. E, ao contrário do que tinha costume de fazer, ninguém que o conhecia na pequena cidade de Morovia deixou de ir ao enterro. Às 16h daquela terça-feira de maio, a capela do cemitério Paz Eterna, onde ele já havia estado por diversas vezes, da porta pra fora e nunca da porta pra dentro, encontrava-se lotada. Todos estavam lá para dar-lhe o último adeus. Parentes e amigos optaram por fechar o caixão e não ter velório, para evitar a exposição do defunto ao seu próprio enterro. Zeraldo achava terrível a exposição do defunto “Pra que aquilo. Já num morreu? Enterra! Agora deixa o pobre defunto, lá, exposto a quem quiser ver. Isso é sacanagem!”. Houve apenas uma rápida missa e, logo em seguida, a cova.

No meio do caminho, entre a capela e a cova, Vadico, um dos companheiros de redação e farra de Zeraldo, totalmente bêbado, resolveu discursar. Soluçou, enxugou as lágrimas e disse:

“Dentro deste caixão, aqui”, pôs a mão e a garrafa de cachaça sobre o caixão. “Está um homem, um profissional, um amigo que, talvez, nunca terei igual... este homem me fez companhia nos meus momentos mais alegres e tristes. Este foi meu companheiro, que se foi...”, soluçou, chorando. Fez uma pausa de cabeça baixa. “Aliás! Todos aqui sabem que ele não ia para enterros, muito menos para o dele. Então, eu peço, eu ordeno que abram este caixão, pois meu amigo não está aí dentro sufocado. Meu amigo não se foi... não morreu e, se morreu, não veio ao enterro!”, debruçou-se no caixão como se fosse uma imensa mesa de bar, exigindo sua abertura.

Imediatamente começaram murmurinhos e uma agitação entre os presentes. Apreensivamente, todos fixaram os olhos no caixão. Alguns acharam aquilo um absurdo, outros emudeceram enquanto se entreolhavam de soslaio, e alguns não tiveram reação alguma. Vadico colocou a garrafa de pinga no chão, destravou as argolas do caixão e tirou a tampa lentamente, com dificuldade, devido ao peso e ao seu estado de embriaguez. Ninguém o impediu. O compreenderam, respeitaram a sua perda. Para a sua decepção e surpresa, Zeraldo (José Geraldo de Jesus) estava lá, sim. Pálido, pasmo, opaco, com algodão no nariz, de terninho azul, gravata e sapatos.

“A este ele não tinha como faltar. Teve que vir”, comentou baixinho um amigo da redação, com Vadico, pondo-lhe as mãos sobre o ombro, conduzindo-lhe até o “De frente pro futuro”.

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