E lá estava eu, no meio daquelas estantes velhas e mal cuidadas da biblioteca da cidade, arrodeado dos maiores escritores do universo, enquanto, no balcão de atendimento, adolescentes ululantes e "restartizadas" esperneavam por não terem os livros dos maiores escritores do mundo, criados pela mídia nas últimas semanas. O acervo é generoso, apesar de senil e abandonado em sua maioria, mas eu gosto de mergulhar nas entranhas literárias dos esqueletos de aço enferrujados, para achar algo que esteja para mim assim como eu estou para ele. Ainda mais para mim, que sou um bom leitor. Não sou rato de biblioteca e não li quase todo o acervo, como fazem alguns leitores idosos, desequilibrados, astutos ou solitários, mas sou um bom leitor. Nunca faltei com os livros que me pedem para serem lidos. Comigo é assim, raramente leio clássicos ou indicações, de quem quer que seja. Eu espero uma energia muda e vibratória chegar aos meus ouvidos, berrando ou sorrateiramente dizendo, "Hei, psiu, ôh, ôh... aqui! Acredite em mim, você tem que me ler.". E quase sempre funciona. Poucas vezes me arrependi de confiar em minha esquizofrenia literária.
Meus olhos varriam as prateleiras na horizontal, ziguezagueando na vertical para ler as lombadas — como bêbado feliz, voltando para casa, por uma avenida movimentada, mas deserta. Uma lombada negra com letras vermelhas foi registrada por minhas retinas. Antes que a energia muda e vibratória — aquela que fala comigo — chegasse aos meus ouvidos, empinei-a na prateleira com o indicador e vi seu nome, agora na diagonal, "O amor é uma coisa feia". Retirei-o da prateleira e, como acontece muitas vezes, recusei-me a ler sinopse, orelha, comentários ou qualquer coisa escrita naquela capa negra e vermelha, impressa em cartão supremo 250g/m². Nenhum idiota (não por completo) seria capaz de pensar ou sustentar um título como aquele sem conhecer sua origem e seu peso.
— Maldição! — pensei. Aquele era um dos títulos que escolhi para meu primeiro livro de contos e para meu roteiro cinematográfico, que conta a história de um casal que se forma após acidentes cardíacos vasculares, cotidianos. E ainda... ainda é o nome de uma das minhas músicas favoritas, cantada por uma das minhas bandas favoritas. Uma daquelas que me abriram as portas do inferno do pensar, contestar e sentir. Ainda hoje, recordo-me dos efeitos sobre meu ser ao escutá-la pela primeira vez e, ainda hoje, décadas depois, quando a escuto novamente, sinto o passar da energia, tilintando entre meus esfíncteres e o chacra coronário, como se o mundo estivesse a meus pés, ainda que pontiagudos, mas lá.
Registrei o livro com uma funcionária grosseira, que interrompeu bufando sua leitura "facebookiana" para me atender, pegando o livro com as mãos sujas de coriza e farelo de um daqueles salgadinhos que fedem a vômito e vêm num saco gigante. Antes de seguir para casa com a feiura do amor sob o sovaco, paguei umas contas, tomei umas cervejas e fui ao cinema. Quando cheguei em casa, já era noite. Esquivei-me da novela e de meus pais, cumprimentei o cachorro, fui direto para o quarto. Cheirei as axilas — o que seria de um homem sob o sol de Salvador sem Rexona 48h de proteção? —, liguei o ventilador, ajeitei-me no chão morno, que, junto com as paredes e o teto, encaixotavam o ar quente colhido durante o dia. Abri "aquilo", passei a primeira página, a folha de rosto, o sumário, uma dedicatória, e lá estava uma explicação sobre o porquê daquele maldito título. Eu estava certo! Aquele puto miserável não só conhecia como compreendia e sentia o que aquelas canções de trajar homens queriam dizer. Perfeccionista, léxico e incompleto que sou, percebi um erro de grafia no nome sagrado, mas o erro gráfico não me acertou, não era um "n" por "m" que iria me poupar de tal assimilação. Depois do choque, voltei à capa para ver o nome do sujeito indeterminado de tais determinações: Gustavo Rios.
— Eu tenho que tomar uma cerveja com esse cara! — pensei. Ele também parece ter sido afetado por aquela canção. "... este livro só pôde existir por causa deles", dizia a tal explicação, referindo-se à banda. E este texto, também, só existe por causa deles! "O amor é uma coisa rápida e lenta".