top of page
Foto do escritorInFeto

O tempo que não nos devolvem

Atualizado: 4 de mar. de 2021

Estava no aconchego de seu lar dos outros (casa dos pais) e resolveu aproveitar o tempo livre e as energias patéticas do novo ano para resolver algumas pendências que a sua paciência não havia permitido concretizar no ano derradeiro. Entre elas, estava ligar para a operadora de celular, a fim de obter informações acerca de um cancelamento que tentou fazer desde meados de dezembro, e de fato o fez, por cinco ou seis vezes, porém sempre sem efetivação. Primeiro foi via formulário da internet, depois via chat, onde um jumento eletrônico o atendeu e, finalmente, via telefone. Cada uma destas opções, obviamente, fora feita várias vezes.

Por volta das 22h, realizou a primeira ligação. Demorou tanto para ser atendida que o celular que não estava completamente carregado descarregou. Ele pôs o celular para carregar, enquanto tentou pelo telefone fixo, mas a bateria do fixo, que era sem fio, também não suportou os maus tratos da URA e também descarregou. A terceira tentativa não foi diferente, apertou o que tinha que apertar, disse o que tinha que dizer, mas a demora o fez temer, que a porra do celular explodisse em sua orelha, haja vista estar utilizando-o direto da tomada. Então, ele deixou os telefones carregando e foi tomar um banho; já banhado, ligou novamente. Desta vez, enquanto o atendente da URA o engravidava, aproveitou para tirar comida da geladeira. Colocou no prato e o aqueceu no cancerígeno micro-ondas; cortou uma salada de tomate, cebola, pimentão, pimenta de cheiro e maça; fez uma farofa d'água com caldo de carne, cebolinha e salsa picadas; aprontou uma pequena parte da mesa para se sentar; encheu a xícara com chá de Erva Cidreira, levou tudo para a mesa e começou a comer, com o telefone em viva voz ao lado do prato. Ligou a TV na TVE — a única emissora da TV aberta que não fazia apodrecer o cérebro. Passava um show de Luiz Melodia com uma orquestra sinfônica, talvez a da Bahia (a OSBA), mas não tinha certeza. Enquanto comia e ficava atento ao blá-blá-blá do telefone, batia o pé, acompanhando as músicas. Entre garfadas de farofa d’água, salada, picadinho de carneiro, goles de chá e Luiz, o galã da URA repetia o seu lamento em não poder atendê-lo imediatamente e previa o tempo médio de espera de aproximadamente três encarnações. Deu o primeiro comercial, entre propagandas de produtos e serviços inúteis, passou a chamada de um filme japonês ou chinês, que ia passar ainda naquela noite às 00h30. Ele, temendo mexer no celular para abrir um rascunho e acabar desligando a ligação, correu ao quarto, pegou um bloco de notas e uma caneta e anotou o nome do filme e horário; em seguida, passou a chamada de um programa apresentado por Charles Gavin. Ele também anotou, pois achava o trabalho dele sensacional e tinha a impressão de que ele era uma simpatia de pessoa. Melodia voltava a cantar. Ele resolveu apertar o número correspondente a outras opções e, mais uma vez, falou o que tinha que falar, digitou o que tinha que digitar, mas o atendimento não era agilizado ou realizado.

“Diga o que deseja fazer!”

“Estou cansado.”

“Hum... não consegui compreender. Pode repetir?”

“Quero ser respeitado. Eu pago todas as minhas contas.”

“Ainda não consegui compreender. Vamos tentar mais uma vez?”

“Vá tomar no cu!”

“Vou repassar as opções”

Outro comercial veio. O celular começou a pedir bateria. Aproveitando a viva voz, colocou-o para recarregar tomando o cuidado de pôr um pano sobre o aparelho. Uma chamada para um filme ou série brasileira chamou sua atenção, mas o ator parecia ser ruim pra cacete. Mesmo assim, anotou dia e hora para caso estivesse de bobeira, dar uma conferida. Acabou de comer, limpou a mesa, lavou os pratos, repetiu a xícara de chá, voltou a sentar e, durante o bis do Melodia, finalmente, sua ligação foi atendida por uma atendente que parecia uma adolescente num show de retorno do Backstreet Boys, com um sotaque “chicletiano“ e um tom efusivo. Ele respirou fundo e seguiu em frente, fez o que tinha pra fazer. Tirou todas as suas dúvidas, anotou número de protocolo, agradeceu à atendente, deu nota máxima ao atendimento da garota e mínima ao sistema, ajeitou-se no sofá, começou o filme japonês ou chinês, parecia bom, mas ele cochilou com o telefone no carregador, uma xícara vazia sobre a mesa, um bloco de notas, uma caneta sobre o peito e com um tempo perdido que ninguém o devolveria e, mais cedo ou mais tarde, se repetiria.

2 visualizações

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page