— Vaninha!! Olha só quem está aqui — disse, se anunciando ao adentrar pela porta da sala, arrastando uma mala que dava a entender que passaria um bom tempo por ali.
Dário prontamente despertou, tinha o sono leve, até se o vento ventasse mais forte fazia-o acordar. Estranhando aquele barulho atípico na casa, espreguiçou-se de forma precoce e subitamente pulou da cama. Escondeu-se atrás da porta do quarto onde dormia e apontou parte da cabeça ao corredor na tentativa de ver algo sem ser visto. Será que é ladrão? Certamente não. Qual ladrão, ou melhor, ladra anunciaria a sua chegada. Será que sonhei? — pensou Dário.
Com uns poucos centímetros de cabeça e o cantinho do olho que colocou para fora, conseguiu ver uma senhora branca de cabelos negros, vestida com uma roupa chique, toda estampada, cheia de bereguedês pendurados pelo pescoço e braços, parecendo uma árvore de Natal, e um chapéu que entrou na casa antes dela, de tão grande que era. Depois de olhar aquela cena, Dário limpou a remela do olho, passou a língua sobre os dentes, olhou para a cabeceira da cama, viu um porta-retrato e pensou: — LASCOU-SE! Sim. Era ela. Dona Lindalva, sua sogra que não sabia que era sogra de alguém e que ele não conhecia a não ser por aquele retrato sobre a cabeceira da cama tirado no último Natal em Lençóis. Na verdade, o retrato não estava tão nítido, mas era mais fácil reconhecê-la pela forma como se vestia do que por sua fisionomia. E, naquela foto natalina, Papai Noel, hienas e gnomos passavam despercebidos.
Imediatamente, vestiu-se e recolheu cueca, meias, preservativos, CDs do Sepultura, Bad Religion, Rogério Skylab e tudo que estava ao seu alcance e que desse a entender que alguém estranho e do sexo masculino esteve habitando por ali em clima conjugal. Enquanto a voz se aproximava pelo corredor, ele tentava "limpar" o ambiente. Vânia repousava num sono tranquilo e profundo, ao contrário de Dário. Se o prédio pegasse fogo, ela só ergueria a mão até o interruptor para ligar o ar condicionado. Depois de catar e esconder o que deu, Dário pensou em entrar embaixo da cama, mas era cama box; atrás da cortina, também não dava — era de persiana — e o guarda-roupa tinha portas transparentes. Ele pegou um colchonete que Vânia usava mais para dormir do que para o que realmente fora adquirido — praticar Yoga e Pilates —, colocou ao lado da cama de casal, deitou em posição fetal, cobriu-se e aguardou, fingindo que estava dormindo.
— Minha Santa Rita de Cássia! O que é isso aqui neste quarto? — disse Dona Lindalva como se tivesse visto algo inimaginável.
A última notícia de algum namorado que soube que a filha tivera, havia sido há mais de cinco anos, quando, na ocasião, achou o rapaz até simpático, mas reprovou o fato de ele não usar meias e não aparar os cabelos nasais. Vânia, assustada, sem entender nada, tentava acordar cobrindo os seios com o lençol.
— O que a senhora está fazendo aqui, mãe? — disse Vânia, passando a mão ao lado da cama na tentativa inútil de esconder Dário.
— O que eu estou fazendo aqui? Eu é que tenho que perguntar o que este homem está fazendo aqui! — disse dona Lindalva aos berros e gesticulando com o dedo indicador, como se regesse uma orquestra.
— Mas só era para a senhora chegar daqui a dois dias.
— Mas agora eu tenho que avisar com antecedência quando venho visitar a minha filha, é?
— Não foi isso que eu quis dizer, mãe... é que eu podia estar viajando ou não estar em casa.
— É, eu estou vendo o verdadeiro motivo bem aí, deitado no chão, de você não estar em casa ou viajando. Eu quero saber quem é esse homem aí, ou melhor, esta criança aí no chão? A senhorita abriu uma creche, foi?!
Quando se conheceram, Dário tinha seus 21 anos enquanto Vânia tinha 42 anos. Eles se conheceram quando Vânia foi fazer uma palestra na faculdade em que ele estudava. Duas semanas depois de trocarem contato, Dário já estava dormindo na casa de Vânia. E isso já fazia uns dois anos.
— Pois bem, quem é esse marmanjo, esse menino aí? — apontando com o dedo nervoso para Dário.
— Êpa, senhora! Uhuuuu!! Menino eu até aceito, pois gasto horrores cuidando de minha pele, agora, marmanjo, não!
— O que é isso afinal?! — disse Dona Lindalva agora ainda mais confusa.
— Queridinha... você acha que, se eu tivesse realmente alguma coisa com Vaninha, eu estaria aqui? — disse apontando para o chão. — Você não percebeu que esta fruta para mim é laranja podre e que sua filha esta magérrima e abatida? Eu estou aqui tomando conta dela porque ela está doente. Está gripada e estou dormindo nesse colchonete ridículo porque estou com medo de pegar essa gripe horrorosa. Vai que é H1N1 ou essa tal de gripe suína que estão na moda? Tenho que me prevenir! Sou viado, mas não gosto de nada de bicho, não... só de bicha.
Neste momento, ambas, olharam basbaquisadas para Dário. Lindalva, talvez um pouco menos nervosa, pois preferia ver a filha rodeada de homossexuais a vê-la com um homem com idade pra ser seu filho, e Vânia, totalmente idiota com olhos arregalados, tentava balbuciar algumas palavras, mas não conseguia.
— Então quer dizer que você é gay? — perguntou Dona Lindalva.
— Desde esperma, querida! Finalmente, hem! Mas gente velha pra entender as coisas dá um trabalho — disse Dário em tom irônico e com uma vozinha fina e irritante.
— Vaninha, minha filha, me perdoe. Por que não avisou a mamãe que estava doente? Mas você está magrinha e pálida mesmo.
— Tô dizendo, menina. Isso aí desfiada não dá um pastelzinho de carne. Essas tais dessas gripes desgraça a pessoa toda. Num tá vendo essa daí? Parecendo uma carcaça.
Vânia permanecia calada no meio daquilo. Depois de “explicada” em detalhes a situação, os três acalmaram-se definitivamente, apresentaram-se formalmente e foram almoçar. No almoço, Dona Lindalva falou que resolveu chegar mais cedo para passar mais tempo com a filha e que queria realmente fazer uma boa surpresa e saber das novidades. Inclusive como estava se saindo o porteiro novo, que indicou mediante recomendações de uma amiga.
À noite, foi Dona Lindalva quem convidou Dário para jantar e fez um pequeno banquete maravilhoso para cearem, já notando "melhoras" incríveis na saúde da sua filha "doente". Nos dias seguintes, os três passavam muitas horas batendo perna e fazendo um roteiro turístico com dona Lindalva. Foram dias agradáveis, sem nenhuma confusão — excetuando-se os sobressaltos heterossexuais de Dário, controlados por beliscões por parte de Vânia. Duas semanas se passaram e aquele teatro continuava, enquanto dona Lindalva passava a se interessar por reuniões condominiais e conversas com porteiros.
Numa noite de quinta-feira, Vânia ligou do trabalho para casa, dizendo que iria dormir na casa de uma amiga, no caso Dário, que para dona Lindalva dava no mesmo. Dário ainda morava com os pais e, naquela noite, véspera do feriado da Independência do Brasil, eles rodaram todos os motéis possíveis e não acharam uma vaga sequer. Então namoraram um pouco no carro e resolveram ir dormir na casa de Vânia. Quando chegassem, inventariam uma desculpa qualquer e, no auge da madrugada, dariam um jeitinho de se satisfazerem. Ao chegarem, por volta de uma da manhã, não havia ninguém na portaria. Vânia teve que descer do carro para abrir a porta da garagem. Feito isso, subiram e entraram, com cuidado para não acordar dona Lindalva. Ao entrarem, perceberam que a televisão do quarto estava ligada e que a mesa ainda tinha pratos do jantar, incluindo taças e uma garrafa de vinho. Tiraram os sapatos, como de costume e, foram para o quarto. Ao chegarem à porta, avistaram latas de cerveja sobre a cômoda, roupas pelo chão, bitucas de cigarros num pires improvisado de cinzeiro e lá, sobre a cama, estirada, dormindo um sono feliz, estava dona Lindalva no auge dos seus 63 anos exatamente como veio ao mundo nos braços do também nu, seu Hamilton, aquele que era o novo porteiro do prédio e que tinha 42 anos, e que havia sido o verdadeiro motivo da chegada antecipada de dona Lindalva.
Vendo aquilo, Dário e Vânia se entreolharam, tentando adivinhar quem estava mais surpreso. Recuaram, fecharam a porta, seguiram para o outro quarto ao lado e se amaram, adormecendo nus sem se preocuparem com o que diria dona Lindalva ao vê-los da mesma forma, como eles a encontraram.