Hoje eu a vi. Sim, eu a vi, em pé num ponto de ônibus típico de início de semana, cheio, onde todos estavam de olho nos letreiros dos veículos e com cara amarrada. Devia ter cerca de quarenta pessoas naquele ponto, mas por que meus olhos foram direto nela? Também, quem mandou ter aquele cabelo escorrido, brilhante, forte e negro como a morte. Como a morte de nosso relacionamento. Eu estava em pé... e como queria estar sentado no lado oposto, ou melhor, como queria não ter pegado aquele ônibus, que vez em quando atrasa, mas naquele dia foi pontual como uma raposa que rouba uvas. Em pé, fone de ouvido em alguma estação que informava as primeiras notícias do dia, camisa listrada e a calça jeans verde, que ela havia me dado e que eu odiava, mas a vesti, por ser a única limpa e passada. Ela? Estava linda, merda! Ela não estava linda, continuava linda, delicada, suave, doce, sensual. Não passou um filmezinho em minha mente, passou a versão na íntegra, de “E o Vento Levou”, só que numa velocidade incrível. Lembrei-me de quando a colocava entre minhas pernas para pentear seus cabelos ou, ainda, quando passava horas vendo-a dormir, sempre com boca entreaberta com ataques epiléticos nasais.
O trânsito estava livre, mas ali, só ali, naquele ponto, uma quantidade grande de pessoas embarcava, enquanto lá de dentro eu a observava pela janela, feito criança de castigo, que observa a brincadeira dos amigos. Estava de farda, como pode ser alguém tão atraente de farda? Ela e a mania de morder o lábio inferior quando espera algo. Imaginei por onde estaria seu cônjuge, se ela tinha tomado iogurte com passas e suas vitaminas. Talvez 35 ou 43 segundos, foi o tempo que o ônibus ficou parado, enquanto eu a contemplava. Mais tarde, tentei imaginar minha cara de imbecil, ali em pé.
Naqueles 35 ou 43 segundos, senti uma rebelião de gases se formando em meu baixo ventre, como uma tormenta no oceano de minhas emoções. O coração parecia ter trepidado, minhas mãos, que seguravam o corrimão superior, escorregavam empapadas em suor; senti-lo escorrer e ser absorvido em formato de hóstia gigante em minhas costas e axilas. Ela não fez nenhum movimento brusco, parecia estar mais madura e serena, algo ainda mais mulher, que a mulher que deixei. Meus pés pareciam estar soldados ao chão e todo o restante do ônibus despareceu. Nem a voz do baleiro, que mercava sua mercadoria aos berros, eu ouvia, e a voz do locutor converteu-se em acordes de amor; o aspecto urbano caótico do ponto de ônibus foi substituído por uma espécie de fundo azul, com alguns fragmentos de nuvens e flores esboçadas. Foi isso que senti, naqueles 35 ou 43 segundos, associado a lembranças, trepidações cardíacas, suores, dormência e ausência presente.
O ônibus, depois daquela eternidade, fez o favor de seguir. Não virei o pescoço para continuar a vê-la, segui viagem, o vento foi absorvendo as hóstias de suores, mas a tremedeira e a rebelião de gases continuaram, assim, como o fantasma daquela viva mulher, uma finada que está mais viva do que tudo, que possa experimentar e que meu corpo recusou, mas a mente agarrou, até então. Depois de tanto tempo e certeza veemente de que não temia mais àquela assombração, descubro meu poltergeist particular. O fantasma de um vivo, um fantasma de carnes brancas, ossos frágeis, olhos miúdos, cabelos negros, anêmica e que atende por um nome. Onde já se viu isso? Aquela sensação inóspita ficou dentro de mim por todo o dia. Sabia que ela iria passar uma hora e tudo voltaria "ao normal"; o que eu não sabia e gostaria muito de saber, era quando iria novamente, ser submetido aos espantos, daquela finada.