Na noite passada eu tomei um porre. Nossa mãe, que porre, há tempos que eu não bebia daquele jeito, o caboclo me autorizou, chegou ao pé de meu ouvido e disse, "beba nêgo, pode beber que hoje estou a fim.". Eu voltava do trabalho maçante e mecânico, e a cidade estava em pânico com os tais preparativos da inauguração da Arena Fonte Nova, estádio oriundo da decadente Fonte Nova, que em 2007, por culpa das autoridades políticas, de segurança e é claro, do povo, vitimou sete pessoas num acidente estúpido, que poderia ser evitado por um estagiário ético e de bom senso. Não liguei para ninguém, pelo contrário, desliguei os celulares, tomei um banho e fui para um bar de minha preferência. Esperei cerca de 10 minutos até que a mesa de meu agrado vagasse; lá no cantinho, na mira do ventilador e com alguns decibéis a menos do som que pocava lá fora.
"Cerveja?", perguntou Bigó, o garçom. "Geladíssima?", ratifiquei. "É pra já!". Limpei a mesa com um guardanapo e abri o livro de Carlos Heitor Cony, que estava a ler. Até meu derradeiro porre, li 62 páginas, entre observações invejosas do retardado que não consigo ser e olhares de soslaio para as bundas das mulheres-crianças que circundavam o local. Consegui ler e tomar meu porre, eram meus objetivos, mas minha mente ficou infectada com a conversa generalizada da inauguração da Arena Fonte Nova. Quase todo o bar falava naquilo; pessoas mostravam seus ingressos, ligavam para amigos para marcar, desmarcar e se exibiam em selfies feitas por seus celulares espaciais, e algumas mesas já estavam forradas com bandeiras do Bahia ou Vitória e 15, talvez 20 pessoas já trajavam seus uniformes tricolores e rubro-negros, numa espécie de concentração do evento. Paguei minha conta e cambaleante, fui pra casa. Nada de Dormonid, Rivotril, Flunitrazepam, ou qualquer benzodiazepina. Eu apenas deixei minhas Havainas de lado, coloquei o Abraçaço do Caetano no repeat e apaguei feito um lutador de MMA nocauteado.
"Tudo preparado para a venda dos ingressos da grande inauguração da Arena Fonte Nova, que irá receber o clássico BAVI no próximo dia sete de abril.", dizia o repórter em tom de empolgação no principal noticiário esportivo. A mídia falava nisso todo o tempo, seria a maior confusão para a tal vendagem dos bilhetes, como sempre foi em jogos grandes. A Arena gastou mais de meio milhão de reais para ser preparada e ao que dava a entender, toda a população aguardava por aquilo como muitos aguardavam a volta do senhor Jesus Cristo. No dia marcado para a vendagem dos ingressos, nos guichês do próprio estádio, a movimentação era intensa desde cedinho, mas não de torcedores -- ainda não -- eram reportes, jornalistas, fotógrafos, blogueiros, assessores, etc. Todos querendo se instalar nos melhores ângulos, para fazerem as melhores transmissões e registros. Até duas emissoras estrangeiras estavam por lá, fazendo a cobertura. O comandante da PM, responsável pela operação, reuniu seus homens para passar as instruções. Havia guarnições a cavalo, motos, diversas viaturas e até duas unidades táticas de operações especiais, caso houvesse algum tumulto generalizado.
"Em fila soldados!", berrou o comandante que beirando às cinco da manhã, parecia ter voltado da guerra e estar furioso. "Hoje é o início de um marco na história de nossa cidade. Este estádio foi reerguido pelo nosso Governo, para receber os jogos da Copa do mundo em 2014 e para prestigiar não só nosso esporte, mas também nosso povo que é tão fissurado em futebol.". "Nem de futebol eu gosto, filha da puta.", disse de canto de boca um cabo ao colega que riu pra dentro. "Desta forma quero que hoje, saia tudo correto, sem deslizes. Tem TV aqui de todo canto e não podemos vacilar, não vamos nos exaltar, usar de violência ou agressividade. Caso venha a ter algum imprevisto, prioritariamente serão usadas balas de borracha, gás lacrimogêneo e spray de pimenta e mais nada! Entendidos?", finalizou o comandante. "Sim senhor comandante!". "Podem se dispersar, até segunda ordem para tomada de suas posições.".
Os raios de sol já iluminavam quase por completo a cidade do Salvador e nenhum sinal de torcedor para comprar ingresso. "Isso tá muito estranho. Já são quase cinco e meia e ninguém apareceu. A previsão era que houvesse uma multidão já dormindo na fila desde ontem.", disse um capitão da PM a um repórter conhecido. "Deve ser o preço do ingresso, aí todo mundo pensou, que por tá caro não ia ter fila.", respondeu. "Será? Acho que não. O povo é uma desgraça de burro, não importa o preço, ele deixa de comer e vestir, mas vem.". "É verdade, se fosse pra outra coisa não teria confusão alguma.". "Mas que tá estranho tá.".
Alguns profissionais tomavam café, os motoristas dormiam nos carros, muitos falavam aos telefones, os técnicos montavam seus equipamentos e os ajustavam às suas necessidades. "Humm, isso vai dar a maior merda, que ver... repare.". "Por quê?". "Vai chegar todo mundo de vez e aí vai ser uma confusão dos diabos.", disse um soldado mordendo um pedaço de pão com carne. "O foda é que com essa porra de TV aqui a gente ainda vai ter que ficar escutando desaforo do povo.". "Que nada, tudo tem limite, se me disseram alguma coisa eu rumo-lhe a mão.". "Você ouviu o comandante. Use um ‘gászinho’ de pimenta.". "Rebanho de porra que não tem o que fazer.". Os soldados riam e continuavam a resenhar.
Seis e vinte da manhã, muitas pessoas já passavam pela frente da Arena, para correr, para trabalhar, para malhar, mas nenhuma delas para comprar ingressos. Às sete horas teve início, um furdunço verbal. Todos os profissionais envolvidos comentavam a mesma coisa: "O quê que tá acontecendo?"; "Será que aconteceu algo e não estamos sabendo?"; "Será que a data divulgada na TV foi errada?"; "Impossível!", gritaram três repórteres ao mesmo tempo, sem desviar a vista de seus celulares. O comandante da tropa pegou seu cronograma que estava marcado com uma faixa verde fluorescente, "Dia 29 de março de 2013 - sexta - venda de ingressos para o 1º BAVI da Arena Fonte Nova". Ele mostrou a prancheta aos demais profissionais. Todos conferiram seus ofícios, comunicados e notificações, que confirmavam a mesma coisa. "Alguém na escuta, na escuta?", disse pelo rádio o comandante. "Prossiga 7890.". “Algo de errado por aí? Estamos aqui na Arena desde as quatro da manhã com todas as guarnições solicitadas e ninguém apareceu pra comprar ingressos. Nem fila tinha ou tem. Repito: ninguém apareceu para comprar os ingressos!". "Entendido. Vou averiguar e faço contato, 7890. Desligo!". Todos os profissionais falavam em seus rádios, laptops, galaxys, smartphones, tablets e celulares, em busca de alguma informação que justificasse aquela atipicidade. Era comum, pessoas dormirem na fila em busca de ingressos, seja lá do que fosse. Imagine no primeiro jogo entre os dois maiores times do estado e num novo estádio!
"QAP, QAP.". "Prossiga!". "Tá tudo certo aqui, confirmei com o comando geral e tô aqui em mãos, com cópia do documento assinado pelo secretário de segurança.". Outras confirmações começaram a surgir: "Aqui na emissora tá tudo certo."; "Sério? Ta tudo certo por aqui!"; "Foi firmada está data para a venda."; "Impossível ser outra data. Talvez o horário ou ponto de venda esteja errado."; "É isso mesmo, porra!”; "Confirmei hora, data e ponto de venda. É ai mesmo!"; "Please, what is happening?", perguntou um dos reportes gringos a um cabo-man. "Ô meu preto, eu não falo inglês não, mas parece que deu merda em algo. Pergunta ali, ó", respondeu apontando aos policiais, enquanto ajeitava seus cabos. A cena era generalizada. Todos e tudo em busca de alguma explicação. Qualquer dúvida de erro que pudesse haver, foi tirada quando por volta das 07h40min, começou a chegar os primeiros funcionários da Arena, que trabalhavam na bilheteria. Estavam com semblantes mal humorados por terem trabalhado demais na última semana, para os preparativos. Um deles, seu Adroaldo, de 53 anos, saltou do ônibus e ao avistar a cena se benzeu e disse: "Deus seja louvado, está porra foi adiada!". Outra, Letícia, não acreditou no que viu e olhou para todos os lados para garantir que estava no lugar certo. Aos poucos foram chegando dezenas de funcionários, que também se surpreendiam e não sabiam o que estava acontecendo.
Passava das oito e meia quando o secretário de cultura e esporte foi acordado pelo prefeito da cidade, que havia sido acordado pelo governador, que estava a "trabalho" na Noruega. Antes das 10h, políticos, secretários, engenheiros, arquitetos, assessores, chefes de gabinete, chefes de redação, coronéis, etc. Já estavam no lugar, e tudo já havia sido noticiado na TV. Todos estavam lá... menos o povo! O povo estava nos ônibus lotados, nas calçadas e passeios, nos shoppings, nos trabalhos, nas calçadas, nas lanchonetes, nos hospitais, nas repartições públicas, etc. Era um dia absolutamente normal, exceto pelo fato de não haver interessados em comprar ingressos para o maior evento esportivo do ano, na Bahia. Nada acontecia. Um fotógrafo aproveitava para comprar lentes para sua câmera na internet; outro fazia o backup do último freelancer que fez na noite passada; um motorista jogava cartas com um segurança; um cabo-man, passava as mãos nas pernas de uma maquiadora; alguns policiais contavam suas feituras covardes às gargalhadas; uma repórter lixava as unhas; outra tentava se manter em pé, ainda bêbada da noite passada; um cinegrafista testava seu aparelho dando close nas genitálias dos PMs; um capitão pai de três filhos e responsável pelo apelido de "chapa quente" ligou para seu amante, um delegado da narcóticos, dizendo o ocorrido e que se fosse liberado, poderiam fazer uma sacanagem, após almoçarem juntos no apartamento que mantinham em segredo; um roadie coçava o saco e cheirava; um arquiteto se masturbava no banheiro novinho da Arena. Ele gozou na parede e tirou uma foto da porra escorrendo no azulejo, antes virgem; um cachorro se espreguiçava sem entender nada; um pombo cagou no quepe de um sargento; uma dona vendia lanche; um mendigo dormia. O céu, as ruas, nada havia de diferente.
"Eu estou há três anos com câncer na porra desta próstata e sei que em breve vou morrer, mas nunca imaginei que fosse ver algo assim", comentou um grande redator boquiaberto. "Essa porra tá parecendo aquela música do Raul 'O dia em que a terra parou'. "Caralho cara, você me deu uma grande ideia", disse empolgado um cinegrafista ligado a projetos cinematográficos, que imediatamente falou com outros colegas e ali, na hora, decidiram captar imagens para a provável feitura de um curta metragem. "Inexplicável! Nenhum torcedor aparece para comprar ingressos para o primeiro BAVI do ano.”, era a chamada da reportagem que seguia com os fatos ocorridos naquela manhã. "Como é que pode, como é que pode, um evento desses e o povo não ir prestigiar? Gente, vamos ter mais respeito pelo o que nos é dado? Vamos agora ver imagens exclusivas, de um corpo que foi encontrado esquartejado e queimado em Campinas de Pirajá.", disse uma repórter pertencente a nojenta corja de profissionais sensacionalistas da TV.
O dia acabou e desde o momento em que a primeira notícia foi ao ar, até o último jornal da noite, as manchetes eram as mesmas: “O povo não apareceu na bilheteria!”. Dalí até a data da inauguração, os quase 60 mil ingressos deveriam, tinham que ser vendidos não importava como. Comissões foram formadas, por esportistas, dirigentes, políticos, comerciantes, Polícia, por todos, menos por torcedores, que não se interessaram nos fatos. Por dois dias e toda a madrugada subsequente ao ocorrido, foram analisadas e criadas alternativas para que os ingressos desencalhassem. Enquanto a bilheteria continuava aberta sem vender. A semana passou, mais reuniões foram feitas e nada acontecia. Um colapso tomou conta de empresários, cartolas, associações, confederações, etc. Apelos foram feitos nos sites dos times Bahia e Vitoria, uma campanha foi gravada com jogadores, artistas, músicos e personalidades, de forma geral. Nela era dita a importância de frequentar e dar apoio ao futebol baiano e finalizavam com o bordão: "Venha conhecer a Arena!". Ivete Sangalo, Carlinhos Brown. Marcio Vitor, Léo Santana, Margareth Menezes, Bel Marques, Durval Lelys, etc. Mas nenhum deles conseguiu atrair, sequer, uma pessoa a bilheteria. Especialistas em psicologia, gestão de pessoas e crises sociais foram chamados, programas inteiros eram dedicados a tentar explicar o fenômeno sociológico. Divulgaram o corte das transmissões via TV fechada, sorteio de ingressos, prometeram descontos em impostos; pai Jadson de Oxossi, Aritana de Iansã, Zoraya espírita, Janete de Ogum, Joca Tranca Rua, etc. Todos davam suas explicações, tiravam suas conclusões, mas nada acontecia. O preço foi abaixando até ficar pela metade do valor e ainda com direito a meia-entrada para estudantes; foi anunciado: venda casada, transporte gratuito no dia do jogo, shows, e nada!
Até a véspera do clássico nenhum ingresso foi vendido. A Polícia, nesse meio termo estava em estado de alerta, esperando atentados e manifestações contra o valor gasto na obra, já que a cidade se encontrava um caos em todos os sentidos e, o Nordeste, passava por uma das maiores secas de todo o século, mas nem nas redes sociais se comentava algo. Era como se o povo estivesse esquecido. Uma emissora mandou às ruas pessoas para escutarem o público. Geralmente o que se ouvia era: "Não me interessa, tenho outras prioridades."; "Nem pensei em ir."; "Poxa, uma pena."; "Gosto de futebol, mas tenho programas mais interessantes para fazer com minha família."; "Sei lá, só não quero ir."; "Vou ver em casa."; "Prefiro descansar."; "Vixe! Nem sabia que tava tendo isso."; "O povo tá começando a acordar!"; "Que bom! Que seja a primeira de muitas respostas do povo."; "Arena o quê?". Havia diversas respostas, mas nenhuma delas respondia, de fato, a questão. Tudo que deveria ser feito, foi feito. Até a Igreja passou a pedir aos fiéis que levassem "a paz familiar aos estádios", mas nada adiantou.
O derradeiro dia chegou e tudo estava preparado: policiamento, emissoras, jogadores, juízes e bilheteria aberta e pronta para vender os mais de 60 mil ingressos a preços populares e com dezenas de opções de brindes. Dentro do estádio somente gandulas, policiais, imprensa, corpo técnico das duas equipes de futebol que se enfrentariam e alguns parentes e amigos dos ali presentes, que no total não contabilizavam nem 500 pessoas. Certamente seria o BAVI mais incrível de todos os tempos. Duas horas antes do espetáculo da bola, estava marcado um pequeno show de inauguração, com personalidades da música baiana, entre elas: Ivete Sangalo, Margareth Menezes e Olodum. Todos estavam lá, mas não havia público, não havia fãs, torcedores. Não havia gente suficiente! O som chegou a ser testado, mas nenhum dos artistas se apresentou. As 16h em ponto os dois times estavam em seus lugares, a bola posicionada ao centro do campo e o juiz preparado. Todos olharam ao redor e nada acontecia, era como estar jogando em um anfiteatro gigantesco e assombrado. O juiz autorizou a partida. Do lado de fora da Arena Fonte Nova tudo corria normalmente, pessoas faziam atividades físicas, yoga, meditação, casais namoravam na grama, ambulantes vendiam seus produtos, os bares ao redor estavam cheios, crianças corriam e pedalavam e todos bebericavam e conversavam alegremente. Nenhum dos 1.200 policiais militares, 120 policiais civis, 400 seguranças privados ou as 240 câmeras registraram algo. Somente a fartura do vazio nas dependências da monstruosa e milionária construção. No segundo tempo, decidiu-se abrir os portões para ver o que acontecia. Somente um cão sarnento, vadio entrou. Coçou-se, urinou num canto e saiu desinteressado. O jogo terminou o estádio se esvaziou ainda mais, as luzes se apagaram, o inacreditável foi "crido", e o povo nas ruas, em suas casas ou no trabalho faziam seus afazeres normais em preparativo para encarar mais uma semana. Arrumavam suas mochilas, preparavam a cama, conversavam com seus filhos, tomavam as últimas cervejas do dia, beijavam os cônjuges, viam TV, ouviam rádio, acessavam a internet, etc. Na alta madrugada todos adormeciam e suas mentes acordavam aos poucos para a inconsciente consciência do viver. Mas aquilo foi apenas o começo do que certamente seria a maior revolução e evolução que estava para acontecer.
O jogo começaria às 16h, mas desde as 08h40min, eu fui acordado por um vizinho lavando o carro, escutando o hino do Vitória em uma versão funk, tão alto, que um torcedor do Amazonas poderia escutar. Enquanto outros, já no bar, gritavam "Umbora Bahêa, minha porra!".