Eu quero dormir e acordar sem restrição de horário; não quero passar a roupa nem usar calças jeans neste calor insuportável; quero comer um cheeseegburguer com bastante maionese e um refrigerante no café da manhã; quero dar uma voadora em dona Zulmira, a vizinha que escuta jornal policial às seis da manhã logo depois da missa; quero mandar tomar no cu em alto e bom som todos os que julgo idiotas e que cruzam meu caminho; quero dizer "Olhe, sua desgraça, procure outro emprego. Ninguém tá te pedindo favor, não!" à mulher que despacha lanches na padaria com um mal humor empanzinativo; quero pegar os aparelhos sonoros que tocam no transporte coletivo e enfiar no cu de seus donos no modo vibratório tocando grind core; quero enfiar o crucifixo no cu da crente que me chama de "amado" logo que chego ao trabalho; quero queimar a pilha de relatórios do trabalho; quero dizer a Messias, um colega de trabalho, que suas mãos são nojentas e suadas e que é horrível ter que as apertar e mais horrível ainda é ter que tolerar sua companhia no almoço, pois ele fala cuspindo o tempo todo; quero tomar uma cerveja gelada no meio do expediente e queimar um baseado para relaxar; quero dizer a Maíra, minha pseudonamorada, que detesto a comida que ela faz para me esperar quando me convida — e eu aceito não querendo ir — para ir à sua casa; quero dizer a irmã de Maíra que eu tenho o maior tesão nela e que eu encontrei o seu namorado namorando com um cara; quero dizer a alguns amigos que eles são caras legais, mas que não suporto mais suas companhias falando as mesmas coisas há 20 anos.
Como sou um idiota, covarde, racional com um pouco de inteligência e discernimento, deito antes das 01h, mesmo querendo assistir mais um filme, pois tenho que acordar às 05h20; passo a camisa e enfesto calça jeans — como minha avó ensinou; preparo um café descafeinado, por conta de minha enxaqueca, com inhame e batata, pois tenho evitado comer trigo devido à pressão e ao colesterol altos, identificados no último check up; dou de cara com dona Zulmira e a cumprimento com um “bom dia” chocho; pelas ruas, vou assentindo com a cabeça para as pessoas que cruzam meu caminho, inclusive para o vizinho do 305, a moça do jogo do bicho e seu Osório. Todos idiotas de carteirinha. Entro na padaria e peço uma salada de frutas para viagem e aguardo que o atendente menos mal-humorado fique livre para me atender. Dentro do metrô, mudo de lugar duas vezes, por conta das pessoas que insistem em não usar fone de ouvido; ao chegar ao trabalho, entro pela saída de emergência para não ter que cumprimentar a crente que fica na recepção destilando amor evangélico a todos que passam; preparo dezenas de relatórios e os organizo nas pilhas semanais; aperto a mão de Messias e sigo com ele e mais três idiotas para almoçar. Sorrateiramente, brigamos com socos oculares para ver quem vai ficar na frente do Messias e ter sua comida temperada por seus perdigotos; no meio da tarde, tomo uma xicara de chá verde e fumo um pequeno charuto; recebo uma mensagem de Maíra, minha namorada, convidando-me para tomar café em sua casa. Antes de ir, tomo um copo de vitamina, para forrar o estômago. Lá, coloco ketchup e mel em tudo, para melhorar o gosto ou a falta dele e, como, como quem está faminto; sentado no sofá, vejo a gostosa da Marta, irmã de Maíra, passar em seu shortinho para encontrar o viado enrustido do seu namorado. Pego uma almofada com a cara do Elvis e coloco no colo para disfarçar a ereção; saindo de lá, vou ao bar encontrar uns amigos que há dias vem insistindo em me ver. Tomo alguns chopes, escuto as mesmas coisas finjo-me de normal e feliz.
Lá pelas onze, sigo para casa, apressando os passos para tentar assistir mais um filme, sem que fique muito tarde para ir dormir. Enquanto ando pelas ruas de paralelepípedo, eu me pergunto: “Em qual Nárnia se meteu minha coragem, autorrespeito e salvação?”.