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Esquece Paris

Atualizado: 4 de mar. de 2021

Dois anos em Paris. Dois anos no estrangeiro, na terra do amor e glamour, com tudo pago e ainda ganhando dinheiro. Essa foi a proposta mais arrebatadora que recebi em toda minha vida profissional. Também, após cinco anos e três meses aguentando as grosserias do diretor geral, como sua secretária e maquiadora, eu merecia uma volta ao mundo. Nem pensei duas vezes, na verdade, eu nem pensei. Disse sim, automaticamente, como um bocejo que sai antes do adormecer. Lembro que, só depois que cheguei ao meu pequeno apartamento, analisei a proposta de uma forma mais racional, mas nada me prendia a Salvador. Toda minha família já era passado. Meu pai e minha mãe já tinham passado dessa pra melhor ou, como diz minha tia Eulária, “descansaram”. Tios, primas, irmãos, avós, amigos, vizinhos, cada um tomou seu rumo ou “descansou”. Só o Cleber, meu amigo íntimo, paquera, quebra galho, ou seja lá o que fosse, poderia me impedir de algo, mas eu tinha certeza que não aconteceria isso. No fundo, no fundo, eu sabia que ele gostava de mim, mas o fato era que, no raso, no raso, ele era superficial, no entanto me agradava passar os dias com ele. Era engraçado, prestativo, simpático e me garantia orgasmos que nunca imaginei ter. Conforme previsto, nada fez ou falou para dificultar minha opção, apenas me olhou triste e disse: “vou sentir saudades, mas vai ser importante...”. Pegou o carro e foi me levar ao aeroporto, com direito a uma rapidinha no estacionamento, sob a sinfonia das turbinas.

O voo atrasou horas, e, depois de cansativas escalas e conexões, finalmente desembarquei em Paris — acabada, toda torta, com a coluna um lixo. Lá, Camile me esperava, uma típica francesa, magra, esguia, pernas finas, pele branca, nariz afilado e um sorriso largo no rosto. Ela segurava uma folha de papel escrito meu nome. Quase imediatamente nos demos bem, paramos numa lanchonete e tomamos um café. Ela fumava um cigarro após o outro e comentava sobre os hábitos políticos da cidade. Já no táxi, conversávamos como duas colegas que se reencontram. O local que fiquei era um pequeno condomínio de casas conjugadas com uma sala arrojada, cozinha ampla, banheiro com sanitário e chuveiro esquisitos, dois quartos azuis e uma janela que dava de frente para um muro que tinha um belíssimo grafite da Torre Eiffel. No dia seguinte, fui conhecer a equipe de produção. Maquiadores, modelos, editores, fotógrafos, iluminadores, técnicos, etc. Todos aparentavam uma alegria confiável e cativante. Não tive dificuldades com o francês, pois um dos motivos pelo qual fui escolhida para esta promoção, além de meu catálogo de maquiagens, foi minha fluência em francês e italiano, que aprendi na faculdade e com alguns namorados estrangeiros, conquistados também na faculdade, em programas de intercâmbio. Depois de alguns meses, eu já era quase uma francesinha bem copiada. Andava por cafés, docerias, sabia nomes de praças e pontos turísticos, já conhecia todos os trajetos dos metrôs e ônibus, já dava até informações aos turistas desavisados. Oito meses se passaram e tudo corria bem: amigos, algumas paqueras, dinheiro entrando, aprendizado profissional e cultural e eu seguindo. Eu me comunicava com Cleber através de e-mail. No início trocávamos cerca de dez por semana, com o tempo esse número caiu para cinco mensais. Quando percebi o distanciamento, mergulhei no trabalho e nos braços de Phillipe, um codiretor sueco, que era correspondente na França de um jornal chileno. Um bom partido, mas não era só eu quem achava isso. Excursionei com a equipe para promover alguns eventos por Bourges, Toulouse e cidades do Vale do Loire. Passei quase cinco semanas sem me comunicar com Cléber, e foi aí que o homem enlouqueceu. Quando finalmente abri minha caixa de e-mail, havia dezenas de mensagens, perguntando sobre meu sumiço e trovando saudades. Eu me senti sádica afinal, eu podia olhar o e-mail em qualquer canto, mas também, me senti importante. Ele realmente sentia algo por mim. Depois disso voltamos aos dez e-mails semanais, alguns telefonemas e até uns papos eróticos, via celular e webcam, nas noites em que não estava com Phillipe ou ele não estava consolando alguma modelo.

Numa madrugada fria, o telefone tocou, atendi ainda dormindo, e do lado de lá tocava “Esquece Paris”, música de uma cantora chamada Daniela Firpo. Era Cleber num discurso derretido, dizendo que estava louco de saudades. Talvez estivesse bêbado, mas não percebi. Ou não importava. Fiquei com aquilo na cabeça, por semanas, me martelando. Nunca tinha ouvido aquela música. Onde ele conheceu aquela música? Logo ele, que sempre foi chegado a axés, pagodes e cia. Bom, isso não importava, o que importava era que, a partir daquele momento, ela passou a ser “nossa” música. Durante dias e noites, fui acordada com “Esquece Paris”. O coração apertou, a saudade bateu e, numa bela manhã, cheguei ao estúdio e disse: “preciso ir ao Brasil”. “Mas assim de repente?”. “Sim, é uma quase urgência.”. A chefa me olhou com cara feia e disse que ia ver o que podia fazer. Depois de alguns telefonemas, conseguiu uma vaga pra mim na equipe brasileira que cobriria alguns eventos no carnaval do Rio e que de lá, após uns trabalhos, poderia seguir para Salvador, mas que a empresa não custearia essa viagem. Como na decisão da ida a Paris, aceitei imediatamente e embarquei para o Rio alguns dias depois. Trabalhei, por três dias, fazendo umas campanhas nos sambódromos e depois cheguei à terra santa sem avisar. Quando desci do táxi, deixei minhas coisas em casa e fui direto procurar Cleber. Era terça de carnaval. Na porta de sua casa, havia um aviso dizendo que todos estavam no bar da cunhada, ajudando na vendagem de cerveja. Como o bar ficava em pleno circuito carnavalesco, fui para casa, tomei banho, coloquei um shortinho jeans e uma blusa comprada num bazar francês e segui. Chegando à Avenida Sete, dei de cara com o trio da Ivete Sangalo, cantando, “Alô paixão, alô doçura, doce ilusão de um coração...”, me arrepie toda. Eu queria encontrar Cleber e me entregar como nunca. Assim que o carro de apoio do trio passou, entre a multidão de foliões pipoca, avistei-o, sentado na cadeira do bar, com uma mulher em seu colo, trocando caricias e beijos. Fiquei imóvel, sem saber o que fazer. Comprei uma cerveja e bebi de uma só vez, pensei em fazer um escândalo, em matá-lo, em voltar imediatamente para a França, mas nada fiz. Peguei um táxi de volta pra casa, chorei por dois dias, sem abrir as janelas, para que não percebessem que eu havia voltado, e finalmente, quando criei forças – quase vinte dias depois –, mandei uma mensagem para a equipe da França, solicitando minha volta. Disseram que não havia possibilidade, já que a pessoa que me substituiu foi efetivada. Passei mais dois dias chorando e depois contatei meu antigo chefe, que me explicou que, como eu estava indo muito bem por lá, conforme relatórios gerenciais, minha função aqui, também, havia sido preenchida e que, no momento, não tinha como me encaixar. Tudo desmoronou. Além de perder a oportunidade de minha vida, perdi o homem que achava que gostava de mim e ainda o emprego aqui no Brasil.

Hoje estou sozinha, faço freelances e, ironicamente, moro no Terminal da França, numa viela não tão charmosa como a de Paris, numa casa bem menos confortável; o chuveiro não é esquisito, mas muitas vezes falta água e tenho que tomar banho de cuia; e em frente a minha janela, não tem um grafite ou quadro da torre Eiffel, tem umas pichações e uma placa “Vende-se geladinho”, mas com a ajuda de um binóculo, que o Phillipe me deu, consigo ver o elevador Lacerda, que a noite fica todo iluminado, quase uma Eiffel.

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