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Esperança

Atualizado: 4 de mar. de 2021

Mais um dia cinzento surgia, mesmo que por trás das nuvens carregadas estivesse a promessa de um dia de sol; a noite é sempre fria, úmida e interminável para quem dorme sob marquises ou portas de lojas, enrolado em cobertas sujas ou em papelões, que um dia foram embrulhos de móveis da casa de uma família feliz. Pedro não acordou, quem vive nessa situação não dorme, nem acorda. Apenas deita e levanta, após um estágio de letargia — uma espécie de sono da morte. Espantou-se com o barulho do primeiro caminhão que passou, rasgando o motor. Após fechar os olhos por mais uns segundos e encolher-se ainda mais sob os papelões de uma geladeira e um cartaz do programa habitacional “Minha Casa. Minha Vida”, espantou uma barata que subia pelos cascões de sujeira de sua perna. Ela não parou, ele se sacudiu novamente e novamente, até que já impaciente a matou, estralando e esmagando-a em sua coxa esquerda; praticamente a dissolveu pela força da pancada, e em seguida, limpou a mão arrastando-a na pilastra que lhe servia de proteção. Já passava das seis da manhã, o tráfego já se tornara intenso e Pedro já não conseguia mais descansar o corpo; suspirou fundo, escovou os poucos dentes que lhe restava com a língua, e ergueu a cabeça procurando Cida, sua companheira de miséria de longos anos. Eles se conheceram em uma greve da Polícia, quando saqueavam uma loja de eletrodomésticos e uma pequena rede de supermercados. Ela tentava sozinha e fraca, pela falta de alimento, carregar nas costas um fogão de quatro bocas; ele tentava carregar e comer o maior número possível de gêneros alimentícios. Depois de assistir a batalha dela, em tentar manter o eletrodoméstico nas costas, — caindo por duas vezes — ofereceu ajuda, com a condição de que pudesse encher o forno do fogão com comida; ela aceitou, e juntos carregaram as “compras”, para um barraco próximo. Naquela época, Cida habitava um cômodo de um grande edifício abandonado, o qual era moradia de mendigos e usuários de drogas. Depois da operação bem sucedida, passaram a viver juntos e nesta moradia ficaram quase cinco anos, até a Prefeitura expulsá-los e demolir o lugar, para a construção de um órgão público municipal. Depois disso se tornaram inseparáveis, em habitações inóspitas e variadas.

Cida, de cócoras e impaciente, já tentava acender um fogo com restos de jornais e carvão (que pegava dos comerciantes de churrasquinho da região). Ao lado dela, havia uma vasilha suja, cheia de café e um saco com pão velho. Pedro resmungou algo e finalmente se levantou, arrumou seus pertences, passou um resto de vassoura no lugar e preparou a mesa, erguendo folhas de jornal sobre o chão e duas latas, uma em cada extremidade da folha. Depois de algum tempo, Cida levou o vasilhame fumegante e o pão, sentou-se e ajeitou tudo sobre o jornal. Pedro futucou um saco e tirou dele, saches de condimentos (maionese, catchup, etc).

— Pensei que hoje nóis num ia cumê — disse Pedro, rasgando alguns saquinhos dos condimentos.

— Também não, mas tô com um buraco no istômago — disse Cida, enchendo as duas latas de café.

— É, e isperdiçá pão não é nada bão.

— Bem que hoje poderia ter um banquete, né?

— Nem fala, ia ser bão mesmo.

Eles cortam, com os dedos, pequenos tufos de pão, molham no café, colocam catchup e comem.

— O que vamô fazer com nossas coisa?

— Tá tudo arrumadinho, aí ó — aponta com o dedo melado de maionese e sujeira.

— Eh, eu vi. Demora não, aparece algum de nóis pra pegar.

— Vamos mermo, né?

— Num cunversamo isso a semana inteirinha?

— Cunversamo sim...

— Pois bem, então deixa de cunversa fiada.

— Tá bão, tá bão — disse engolindo o último pedaço de pão e desfazendo a mesa do café.

O tráfego da ladeira, onde dormiam, sob uma marquise, já se encontrava intenso; o canto das cigarras de aço, comandadas por monstros humanos, já ecoava.

— Já tá pronta?

— Já sim, e tu?

— Eu nasci pronto, béibi— disse atirando com os dedos e piscando o olho, ainda remelento.

— Eu gosto de você, num sabe? Cê sabe, né?

— E num sei... quem mais ia ficar com uma pessoa assim se num gostasse?

— Temos que esperar desingarrafar.

— Lembra daquela vez, que achamo no lixo um couchão novinho?

— Ih num lembro, dormia que era uma beleza, nem fome sintia.

— E daquela vez que ficamo morando na praia?

— Só era frio, mas a gente comia era bem, né? Os ristorante jogava um bocadão de comida fora.

— Até lasgosta a gente comia, lembra?

— Qué fazer alguma coisa antes?

— Sei-la... Será que vai ser bom lá do outro lado?

— A gente tem alguma coisa pra perder aqui?

— Tem não, e se a gente num se encontrar logo de cara?

— Percura , mas que bestêra, tem boca pra quê?

— O dente cá do fundo tá me doendo demais.

— Meu istômago também, e o tornozeio tá inchado, parecendo uma laranja.

— Eu queria ter uma foto sua pra levar.

— Eu só quero a lembrança. Nela num da pra ver as miséra toda do lado.

— Tá deceno já os grande, oia.

Cida calça sua sandália masculina rasgada; ajeita a calça jeans imunda, que devido ao desgaste parece seda, de tão fina; abraça Pedro pela cintura; olham suas coisas no cantinho do chão e vão até a beirada do passeio. De lá, observam o fluxo de veículos que surgem no topo da enorme ladeira.

— Cê tá com medo?

— Tô assim, sabe? Meia coisada...

— Eu também num sei o que tô sentino, não.

Uma moto passa enlouquecida por eles, quase atropelando-os em pleno passeio.

— Acho que agora dá.

Um caminhão carregado de móveis mostrou seu para-brisa, lá no topo da ladeira. Pedro dá um abraço lateral forte em Cida, beija sua testa, retira a mão dela de sua cintura e a aperta forte. Suas mãos entrelaçadas tremem. Em meio à sujeira da camisa azul de Pedro, uma marca de suor surge no meio das costas e pelos pés imundos e tornozelos inchados de Cida escorre uma urina escura.

— Me percura viu?

— Não vou largar de tu, chulé.

Eles se olham esperançosos e temerosos e num único salto, o casal se joga na frente do caminhão, que conforme velocidade e surpresa do ato, não consegue fazer nada, que não, frear bruscamente, causando um engavetamento na ladeira e a prensagem dos corpos entre as rodas e o asfalto. Entre os olhares curiosos, os benzeres, expressões de desespero e destroços dos corpos de Pedro e Cida, era possível ver sob o veículo, que trazia em sua lateral escrito “Seu Lar — Realizando Sonhos.”, algo que parecia um resto de mão, segurando um livro, cujo título era, “Lar eterno — Há esperança após a morte”.

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