Em meio a uma daquelas viagens de fuga, onde se busca o borrão dos problemas, o esquecimento das agruras cotidianas e segurar a primavera nos dentes, fui ver ao novo filme do Wim Wenders, “Dias Perfeitos”, diretor que fez filmes dignos de serem tatuados na bunda, como é o caso de “Asas do Desejo” (está na minha nádega direita) e “Paris, Texas”. Deixei para o último dia, aquele dia em que, após chegar ao hotel, se faz as malas num misto de saudades e pesar por ter passado rápido, mas também com um alívio de estranheza por se voltar para casa. O filme é um círculo de repetições que seguem ciclos, todos eles com as mesmas características e semelhanças, pois por mais que façamos tudo igual, nada é igual ao dia que passou, ao segundo que passou, pois sobre ele já não temos mais acesso ou a ilusão de algum controle. O rio que você avistou e, por alguns segundos, se voltou para dizer que “o rio continua igual”, já não é o mesmo rio. Assim muitas vezes é a vida: a mesma paisagem com muitas similaridades e muitas coisas diferentes.
Antes de adentrar em comentários acerca do filme, devo compartilhar a primeira sintonia que eu tive com o filme, antes mesmo de vê-lo. Como era o meu último dia de viagem, passei o dia explorando bares, cafés, praças e feirinhas dominicais que oferecem aquele ar de dia perfeito: com praças arborizadas, sol gostoso, boa música, famílias com seus filhos, netos e avós, chope, cerveja, brinquedo para a criançada, guloseimas, paquera, artesanato e tudo mais que se encontre nessas feiras. De lá, como ainda não havia ido ao cinema, pois só achei “cinemas de shopping”, decidi ir ao “cinema de rua” da cidade, onde geralmente estão as verdadeira obras de arte do audiovisual. Ao chegar ao espaço, que ainda não conhecia, me deparei com outros fragmentos de um dia perfeito: a surpresa diante do desconhecido e esperado, o olhar atencioso a cada detalhe de quem queria e estava ali de verdade. A fachada do prédio, a rua tranquila e arborizada, os grafites nos muros, a arquitetura das construções ao redor, a moça da pipoca, a moça da bilheteria, o tipo de pedra utilizado no calçamento, a beleza das senhoras que passavam na rua, e uma graciosa livraria ─ cara como, infelizmente, sempre tem sido ─, com um aspecto moderno, gostosa, com os clássicos de verdade e os clássicos de mentira expostos em sua vitrine e prateleiras, um jazz baixinho tocando. Só havia eu de cliente no espaço. Namorei com as prateleiras de poesia, contos, biografia, história… conversei um pouco com o único vendedor/dono presente, afinal na presença de tantos livros a fala é algo acessório. “Tem alguma prateleira de promoções?”. “Nessa mesa aí, atrás, é onde colocamos os livros em promoção”. Olhei a mesa. Nada que me agradasse e nada que fizesse jus ao nome “promoção”. Curti um pouco mais o ambiente, me dei conta que havia trocado de bolsa e deixei na outra o meu caderninho de “Anotações de Desgraças e Olhares Poéticos em Viagens”, então acabei comprando um novo caderninho de A.D.O.P.V.
Em frente a livraria, havia um café que me rendeu outro fragmento de um dia perfeito pré “Dia Perfeito”. Na vitrine das obesidades, poucas opções, mas com boas caras. O ambiente era um daqueles com aspecto dos cafés encontrados nas salas de arte: intimista, um misto de retrô contemporâneo, convidativo, com equipamentos grandes e bem cuidados. No comando do café, estava um casal de idosos, visivelmente entediados. Não é que não queriam estar ali, mas preferiam estar em casa, deitados em suas poltronas com as pernas para cima assistindo a algum programa dominical, fazendo sudoku, dormindo ou proseando com a família e amigos. Ela ficava à frente do primeiro atendimento, fazendo os cafés, esquentando o lanche e arrumando tudo na bandeja. Ele ficava responsável por cobrar, lavar os pratos, pegar enlatados no freezer, arrumar as mesas, se emburrar mais do que ela, e por perguntar a ela o que os clientes perguntavam a ele. Me dirigindo a senhora, perguntei: “O que é isso”. “Isso é uma trouxa tipo pão de ló, mas com canela e outras especiarias”. “É muito doce?”. “Não, só tem açúcar na massa e é demerara”. “Bom, vou querer ele e um espresso pequeno, preto,”. Num sorriso que tentava ser simpático, mas não conseguia, ela respondeu: “OK. Pode sentar que eu levo”.
Demorei para escolher onde sentaria. Assim como na livraria só tinha eu de cliente até o momento. Pensei em sentar bem ao fundo, mas a iluminação lá era bem reduzida, e eu queria escrever no meu novo caderninho de A.D.O.P.V. Acabei por escolher um lugar central, com duas cadeiras e um lustre com feixe de luz centrado na mesa. Perfeito para a minha escrita. Ainda sentado, vasculhei todo o ambiente daquela ângulo, ainda pude ver alguns transeuntes lá fora; acompanhei a chegada de novos fregueses, tanto para o cinema, quanto para a livraria e cafeteria; vi os cartazes dos filmes “em cartaz” e dos “em breve”. A senhora trouxe a minha bandeja. Saboreei o café com esmero, senti aquele adocicado que, não os paladares treinados sentem, mas o paladar de quem está ali, imerso naquela xícara de café expresso, sem a expressividade que a sociedade nos impõe. O tal pão realmente era saboroso, sem muito doce e com um gosto suave de canela e outras coisas, acho que noz-moscada. Enquanto focava na bandeja de meu lanche e rascunhava a inauguração de meu caderninho, tive mais um fragmento de dias perfeitos. O senhor da cafeteria estava sentado em uma das mesas em frente ao balcão de lanches. Cabeça entre as mãos, cara de entediado. Não falava, mas resmungava algo, não em bravice, chateação, era uma especie de resignação a contragosto. A esposa saiu la de dentro borrifando álcool nas mão, esfregou uma nas outras e parou atrás dele. Segurou em seu ombros e fez uma pequena massagem. Ele afagou as mãos dela. “Eita, que essa sua caspa não para hem…” e pegou um guardanapo para sacudir o ombro do esposo. Depois afagou seus cabelos, ele beijou a parte interna de seu punho direito. Chegou um cliente. Eu voltei ao meu lanche e saído da xícara de café penetrei nas páginas virgem de meu novo caderninho A.D.O.P.V., e por lá fiquei até faltar dez minutos para o início da sessão.
O filme que conta a história do personagem Hirayama, que divide seus dias entre o seu trabalho como zelador dos banheiros públicos de Tóquio, que faz com extremo zelo, com a sua paixão por música, literatura, fotografia e pela solidão. Dentro dessas paixões é onde reside os “pequenos grandiosos prazeres” de estar onde se estar, de viver o presente sem deixar que o passado ou o futuro assumam as rédeas da vida de forma protagonizante, mas é óbvio que isso não está sob o controle de Hirayama, que por mais sagaz, introspectivo e maduro que seja se vê diante de situações simples e até simplórias, as quais é impossível se ter controle sobre elas, e que o faz lembrar que nem só de hoje é feito o agora.
No filme, os dias seguem como os dias nos perseguem, exigindo que sejamos sempre os mesmos em nossos hábitos e cotidianos: acordar, higienizar, locomover, trabalhar, almoçar, retornar, buscar lazer, dormir... repetir. E em torno disso tudo, dessa rotina entediante (foda-se! Fale mal da rotina sim!) é que a magia pastosa, densa e quase paralítica do filme ocorre. E não é só no filme… mas muitas vezes em nossas vidas. A cada dia que dormimos, que acordamos, que existimos, o mundo gira em seu próprio eixo e nos mostra que todo aquele blá-blá-blá de autoajuda de R$1,99 está certo. São excerto que de tão batidos, antigos, simples e manipulados por idiotas e charlatões, os tratamos com descaso, assim tratamos o dia de hoje e trataremos o dia de amanhã.
Se dê ao trabalho de pegar um papel e escrever exatamente como foi o seu dia de ontem. Faça isso agora, com calma e afinco. Lembre de quando acordou até o momento que dormiu; anote todos os eventos, desde os mais importantes aos mais simplórios. Observe que se faltou algo em seu dia, muito provavelmente não foi porque seu dia foi um dia de merda, ou alguém ou alguma situação, que provavelmente durou menos de uma hora, converteu todo o resto de seu dia em um dia morto. Repare que nas anotações, talvez, você não tenha dado o mínimo, o básico de si para que fragmentos de perfeiçoes pudessem mosaicar o seu dia imperfeito ou neutro.
Desculpe, mas vou ser canalha o suficiente para dar uma de coach aqui.
Modo Coaching ON:
você tomou um café da manhã com o que gosta. Não entremos aqui no mérito de ser pobre, de acordar as 04h, etc e tal. Você tomou um café da manhã com o que gosta e está ao seu alcance?
você tomou um banho bom, daqueles que você se sente bem depois de tomar?
você cagou, e curtiu a cagada, sem celulares, sem pressa?
você viu a paisagem dos deslocamentos que fez no seu dia, ou estava com a cara enfiada no celular?… você escutou música em algum momento?
você olhou nos olhos de alguém, de verdade, e conversou com está pessoa, nem que fosse para dizer “fulano, o consultório fica na segunda porta à direita, em frente ao bebedouro, se não encontrar é só avisar”
optou por almoçar bem, nem que seja o podrão que fica a duas quadras do seu trabalho? você se dispôs a andar essas duas quadras para entupir sua veias com felicidade?
você comeu devagar, saboreou a comida sem que o celular estivesse dentro do seu prato?
você conversou com alguém algum assunto legal, ou se não gosta de conversar, se escondeu para almoçar em paz?
você usou as suas redes sociais para ver coisas produtivas, com conteúdo educacional, profissional, ou de lazer cognitivo, ou apenas ficou vendo idiotices e sangue?
quando chegou em casa você tomou um bom café, conversou com um amigo, com algum familiar? Leu o trecho de um livro, estudou um pouco ou chegou tão cansado que tomou um belo banho e apagou cansada, mas confortável?
Percebe como somos nós os responsáveis por criar mosaicos de perfeiçoes em nossos dias, por mais que ele seja ruim, monótono ou apático? As coisas boas são boas demais para simplesmente irem caminhado até o seu encontro. Faça o básico, o mínimo, o necessário para que as coisas boas se interessem e cheguem até você.
Modo Coaching OFF.
Nas duas horas em que o filme rola, é isso. É uma vida dedicada a fragmentar os dias, independentemente de qual dia seja, com coisas boas, com o que preenche, com o que torna o dia menos miserável, menos infeliz, menos pesado. Isso fará você chegar em casa e olhar para a balança do dia, percebendo que ele foi bom, pois a balança está levemente inclinada para o lado positivo. No entanto, nem sempre essa balança vai pender para esse lado.
O filme é recortado com esses mosaicos, e em duas horas são, esses mosaicos que fazem o título do filme acontecer. Na sessão em que eu estava, duas pessoas se levantaram e foram embora. Isso é um direito delas. Elas podem não ter lido a sinopse, entraram por engano, pensaram que era um filme bobo, namastê para fazer selfie no fim da sessão e postar nas redes sociais com uma legenda idiota cheia de emojis. Ou talvez tenham ido fazer coisas que são pedras marcadas em seus próprios mosaicos. Não queriam “perder tempo” com algo que sabiam que não preencheria seus mosaicos. Somente quem constrói seu próprio mosaico sabe o tipo de pedras que deseja colocar nele!
Ainda sobe o filme, há surpresas maravilhosas em ver uma obra que se passa em Tóquio e com atores “do lado de lá” e se ter a surpresa de ouvir uma trilha sonora entrecortada com clássicos universais da música em suas versões originais, a maior parte cantados em inglês e em fita K7. Confesso que me surpreendeu demais. No entanto, ficaria ainda mais satisfeito e surpreso se fossem regravações das mesmas músicas, mas em japonês. Mas daí eu perderia a possibilidade de saber como eu me surpreenderia em ver músicas originais americanas em um filme feito em Tóquio por um diretor alemão. Ou seja, perderia esta oportunidade de fragmento de dia perfeito. Assim, entre repetições, hábitos, pequenas surpresas, sentimentos delicados e entulhos da vida, o filme segue contando os dias do senhor Hirayama. Ao final, em uma única cena, ele quebra a quarta, a quinta, a sexta e todas as outras paredes, fazendo uma brutal síntese do que, de fato, são os dias perfeitos… são dias vividos!
Agora adentro no meu último fragmento de dia perfeito, após o “Dia Perfeito” consumado. Lá estava eu iniciando o fim de minha viagem. Numa rodoviária, pegando um ônibus em direção ao aeroporto da capital. Entrei no ônibus, havia uma garota de uns 25 anos em meu lugar marcado. Inicialmente pensei em informar e seguir minha viagem no lugar que comprei, poltrona 20, junto a janela para ir curtindo a vista. Mas eu estava bem demais para me preocupar com aquilo. A garota estava entretida com o cu dentro do celular ou vice-versa, fazia um estilo “hippie-hipster” e mantinha as pernas suspensas com os dois joelhos prensado na poltrona da frente. Quando fui guardar minha sacola no bagageiro interno pude ver sua coxas magrelas, mas torneadas pelos hormônios da idade. Uma penugem loirinha e uma amostra grátis de sua calcinha azul. Porra, alguém que veste calcinha azul merece uma oportunidade. Sentei ao seu lado e dentro de poucos minutos, o ônibus que estava atrasado por cerca de 30 minutos finalmente iniciou viagem. Com a cabeça encostada na poltrona contemplava a paisagem da janela alicerçada pelas pernas torneadas da garota magrela. Muito verde, muito verde, pequenos vales, alguns animais, mais verde e o azul, desta vez, do céu mesmo. Quando sentei e recostei a cabeça no banco, a visão da amostra grátis da calcinha azul da garota já era passado. Meu fone de ouvido estava encaixado em meu pescoço. Não gosto de iniciar a viagem com o fone ligado. Primeiro gosto de saber que estou ali, viajando. Gosto de sentir o motor na estrada, a roda roçando o asfalto, o barulho do motor, gosto de sentir os pneus do avião saindo do chão, gosto de ter a sensação do objeto metálico lutando para se equilibrar na ladeira íngreme do ar até que fique plano, gosto de ouvir o recolher das rodas e de escutar o “plim” da permissão para desatar cintos. Gosto de saber que já estou ar ou no asfalto rumo ao meu rumo.
Depois de aproximadamente 30 minutos de partida, cansei da paisagem e das pernas da magrela. Fechei os olhos ensaiando um cochilo e finalmente botei meus fones e os liguei. Foi então que a sintonia da vida aconteceu. Mais um dos fragmentos do dia perfeito: a primeira música que entrou na playlist aleatória foi a música que abre o filme “Dias Perfeitos”, e talvez a mais marcante, pois ela se repete em um momento muito intimista do filme: The Animals – House of the rising sun. Nos primeiros acordes que explodiram nos meus ouvidos, consegui reviver todo o filme a partir do momento em que fui vê-lo. Vi minha chegada ao cinema, as observações, a livraria, o casal de idosos donos da cafeteria, o espresso que não foi expresso, o pão “tipo de ló, mas com canela”, uma linda mulher que estava no cinema, os detalhes do filme, as duas pessoas que saíram no meio da sessão, o momento em que a música que eu estava ouvindo era ouvida pelo personagem, a segunda vez que ela aparece no filme, onde é realmente tocada por um dos personagens, o fim do filme, minhas malas sendo feitas, minha chegada na rodoviária e o ultimo café antes de embarcar, o atraso do ônibus, a garota magrela em meu lugar, a sua calcinha azul e suas pernas com penugem loira, e eu ali. Tudo isso nos primeiros acordes da música que dura cerca de 10 segundos. Lacrimejei em um sorriso bobo, agradeci à vida, a mim, ao filme, ao cartão de crédito, a todo álcool e cultura consumidos, à calcinha azul da magrela. Coloquei a música no repete e agradeci por começar o dia com aquele maravilhoso fragmento de dia perfeito.
P.S.: peguei um engarrafamento da peste, quase perco o voo… mas não teve jeito o meu fragmento de “Dia Perfeito” já estava instaurado.