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Covardia

Atualizado: 4 de mar. de 2021

— Vou pegar um pedaço de bolo. Você quer? — perguntou à esposa.

— Sim, quero. Traz também um pouco d’água? — respondeu, pegando o controle remoto.

— Não precisa pausar! — disse já se levantando e indo em direção a cozinha.

Ele não demorou a voltar e, mesmo sem ter a necessidade, pois se tratava de um filme boboca para passar o tempo, ela deu pausa. Consigo, levou um prato de vidro azul contendo sete quadradinhos de torta de ameixa, oriundo de três fatias que dividiu e veio comendo; levou também um copo de água misturado — era como ela preferia. Depois de dar continuidade ao filme e terminarem os quadradinhos de trigo “ameixados”, foi ele quem bocejou por duas vezes seguidas e anunciou: — Hum... vou deixar pra amanhã. Vou ver se consigo dormir. Tô com as pálpebras pesadas e muito cansado, parece que ele está querendo chegar — disse, referindo-se ao senhor Hipnos. Ela sarreou: — Olha só, fica tirando onda perguntando se eu ia aguentar a assistir um filme, e já jogou a toalha. — Vez em quando é bom variar — disse em tom de sarcasmo. Eles riram, enquanto ele se levantava, indo em direção ao quarto.

A insônia era sua mãe, esposa, amante, puta, filha e patrona desde a juventude. Já havia procurado todas as alternativas entre as existentes e ao seu alcance, nada o ajudou por longos períodos. Inicialmente, tratou como qualquer bom samaritano faria: recorreu aos remédios de gôndolas de farmácia, que são comprados como tomates na feira. Depois, tentou medicina natural, holística, atividades físicas, simpatias, mescla de remédios, fórmulas, álcool e outras drogas, mas o maior período de alívio que teve foi quando foi abençoado pelo celeste-negro das receitas e tarjas medicamentosas. E, sendo abençoado por quase uma década, aquela benção já dava sinais de fracasso. Sua fé medicamentosa já não movia montanhas nem estabilizava sonos com tanta eficácia como antes, mas ainda era sua salvação nos dias de pânico.

Após quarenta minutos deitado, não conseguiu nem iniciar um mísero cochilo, suas pálpebras pesavam mais e mais. Levantou-se, apenas por levantar. Ao passar pela porta da sala de TV, sua esposa dormia com a boca entreaberta, o controle dentro do prato vazio e o filme no menu inicial. — Pra cama, mulher! — disse, batendo palmas. Ela despertou, assustada, espreguiçou-se e, como de costume, esticou-se ali no sofá, para continuar o primeiro turno do sono. Ele foi até a cozinha, bebeu um copo de água, comeu mais bolo, acendeu um cigarro de palha e foi para a varanda fumar.

Retornou para a cama. Sua esposa continuava no sofá; já roncava e dava micro convulsões proveniente de algum sonho ou pesadelo. Sentado na cama, pegou um livro de poesia de Falck, leu quatro ou cinco poemas. Uma hora e meia que havia “ido dormir” e nada! Sua cabeça começou a latejar, exatamente em seu centro. Como um veículo que se aproxima lentamente, mas a quilômetros de distância, ouve-se o ronco do motor e sente-se a vibração no peito, vinda do asfalto. Após duas horas, o veículo da dor já se aproximava, agora já não estava mais no centro. Bilateralmente e simetricamente, seguia às extremidades. Sua esposa já capotava ao seu lado, num sono profundo. Já não conseguia segurar as pernas inquietas que, enganosamente pareciam aliviar-lhe um pouco e, mesmo com os 21 graus do ar condicionado, sentia o fogo da perturbação lhe abanar. Duas horas e meia, aquela dor já havia chegado às extremidades de seus destinos e se proliferado por toda a extensão da cabeça, em linhas retas e colaterais desde a base da nuca até a base frontal do pescoço; da lateral esquerda à lateral direita do pescoço, tudo era dor, ardor, pressão e desespero. Não era uma enxaqueca ou uma dor de cabeça tradicional que pulsa “tum-tum-tum-tum”, sua dor era dor velha, rançosa, de estivador com ressaca de vinho vagabundo, de cheiro de cu mal lavado mesmo após ser bem esfregado, dor de fedor de carne fresca tratada que fica no inox da pia e azulejos da parede. Era a dor da demolição de si! Ela repulsava em um único sentido para dentro, como se, aos poucos, fosse completar o espaço da cabeça e implodir. Três horas, ele levantou-se “centopeiameticamente”, para não acordar a esposa, verificou as gavetas com ajuda da luz do celular, verificou o closet e armários do banheiro, a bolsa e não achou um analgésico sequer para aliviar as dores. Havia viajado e seu kit de remédios para agonia havia se perdido e não teve tempo de ir ao médico conseguir a receita. Foi à cozinha, preparou um café fresco e bem forte. Tomou uma xícara pequena e amarga. Foi à varanda, passou um pouco de essência de lavanda no dorso da mão para cheirar enquanto fumava um cigarro de palha. Invariavelmente, menos pior, voltou a se deitar, mais de 200 minutos após abortar um filme para dar luz ao monstro da insônia.

— É como uma irmã siamesa tumorosa — pensou ao recostar a cabeça ao travesseiro. Remexeu-se, mudou de posição mais que um cubo mágico, mas nada. Como quase sempre, o nada o abençoou; sua implosão cerebral aumentava gradativamente e desastrosamente beirava à explosão.

— Minha cabeça vai explodir numa implosão — pensou. Tentou lembrar a última vez que dormiu verdadeiramente bem. Não conseguiu lembrar. Tentou lembrar a última vez que dormiu sem necessitar de uma dose de seus êxtases “desextasiantes”. No último porre que tomou. Tentou lembrar quando necessitou de mais de uma dose. Lembrou: na noite antes da sua viagem de retorno. Deitou por volta de meia noite e lá pelas três tomou sua terceira dose, para ter o luxo de cerca de duas horas de sono antes de ir ao aeroporto. Nada mal, para quem há tempo, não vai nada bem. A dor penetrou seu corpo, como um cavalo penetra sua potra, nódulos de tensão se intensificaram por toda a extensão muscular da nuca até o antebraço. A energia chumbosa descia por sua coluna feito aqueles efeitos enérgicos que eram usados em desenhos do tipo Power Ranges; como faíscas seduzidas pelo líquido condutor das sinapses raivosas, nervosas e dolorosas. Na lombar, ela se espalhou como um líquido que passa por um grande e apertado tubo de ensaio para desaguar num imenso balão de Erlenmeyer. E, em todo este processo, sentia absolutamente tudo, em dor e aflição.

Da lombar, a energia do trovão da morte apoderou-se de seus testículos, próstata, ânus e períneo, tudo isso tilintava em ondas espasmódicas de microchoques e repuxos, gerando um desconforto excruciante. Ele se contorcia, lembrava-se das respirações “Yoguianas”, das posições “Heikianas” e dos conceitos do “Foda-se!”, que neste caso nada mais dizia ou representava do que: vou me fuder! Por incontáveis vezes, já havia sentido que a sua hora havia chegado.

— Vai ser agora! Vou ter um aneurisma ou um derrame ou um enfarto — pensou várias e várias vezes em sua vida de sofrer; e, em muitas noites, ajeitava-se da forma menos incômoda possível e desejava que aquele pensamento se concretizasse e o fizesse dormir para todo o sempre.

Quatro horas havia passado... Ele levantou-se, tomou banho, as lágrimas escorriam em competição com os jatos d’água do chuveiro. Arriou-se no chão com a cabeça entre as mãos, espancava o peito com força, puxava a pele da face como quem quer arrancá-la, pedindo que a desgraça o carregasse. Ali, sentado sob a água, lágrimas e catarros, se foi mais meia hora de mendigo de si, cara de boi lavado, exatamente como na música do Cazuza. Ele se reergueu em esfinge de estilhaços, sentou-se na privada, ainda com a cabeça entre as mãos. Parecia querer arrancá-la. As veias por toda sua face sobressaltavam-se, seus olhos eram sangue, seu semblante de uma guerra perdida. Parou diante do espelho, mesmo molhado lavou o rosto por alguns minutos. Olhou-se no espelho com mais ódio que o ódio em sua face representava. As lágrimas lhe caíam, como o bucho de um animal dependurado com o ventre aberto. Todas as dores eclodiam, erupção de moléstias.

— Eu só quero dormir... eu só quero dormir, desgraça! — gritava baixinho em loops implosivos de soluços e súplicas.

Xingou Deus, chamou o Diabo para um tête-à-tête, Deus era puta demais para aquilo, foi à varanda segurou a cabeça. Tudo doía. Naqueles momentos, ele tinha a certeza que o homem bom dentro dele morria. Ergueu a face, olhou para o céu e, quando topou o olhar com o primeiro arranha-céu de 15 andares — contou um a um —, viu que apenas duas janelas estavam acesas. Olhou ao lado, 12 andares, nenhuma janela acesa; 13 andares, duas janelas acesas; oito andares, uma janela acesa; uma moto em velocidade; um carro zigzagueando; um cachorro. Ninguém estava presente ao seu sofrer. Uma brisa fresca se iniciou, parecia perfurar seu corpo. Ele abriu os braços e ficou ali, abraçando a brisa. Suas lágrimas secaram, começou a respirar em uma quase efetividade. Após uns 20 minutos, tudo parecia diminuir, as dores quase cessaram. Ficaram apenas o peso da alma e do corpo e das pálpebras e das pernas e de todo o resto, mas sem as dores extenuantes, apenas o peso, o cansaço, o aço. Debruçou-se sobre o parapeito e, lá embaixo, no piso do playground, em mármore, estava o desenho de uma estrela bussolar. Bem debaixo de seu nariz, uma resposta, um prumo, um norte para quem está tão perdido.

— Será que faria muita zuada? Viria o Samu ou já carro o funerário ou o Rabecão? Nossa! Rabecão não!

Ficou pensando e vendo a holografia de seu cadáver sobre a estrela bussolar no chão de mármore. Onde a cabeça estouraria, teria fraturas expostas, quanto sangue sairia, o porteiro acordaria, como sua esposa reagiria? Seus pensamentos mórbidos foram interrompidos pela primeira leva de pássaros que cantava, anunciando um “bom dia” para quem assim o visse. Junto com os pássaros, o Sol já estava lá! Fúnebre, como sempre é, para quem não enxerga as cores da vida, mas, ainda assim, sempre traz um decibel de acolhimento.

Vestiu um “pijama social”, desceu até a padaria, entrou, cumprimentou a caixa.

— Oi...

— Bom dia — disse com a cabeça no WhatsApp às 06h12. O balconista o saudou como quase sempre fazia: — Seu Ruy, como é que tá? Dormiu bem? Ele puxou o ar do testículo esquerdo, sorriu e respondeu: — Tudo maravilhoso. Nas graças de Deus!

Sentou, pegou um guardanapo e limpou a parte do balcão que lhe cabia, aspirou o cheiro bom de café fresco, olhou as notícias da capa do jornal, ainda preso ao monte por um pedaço de cordão. Pediu uma média sem leite, com dois pães com ovos. Enquanto aguardava, apoiava a testa na palma da mão direita, tamborilava os dedos da mão esquerda sobre o joelho e apenas inspirava aquele cheiro de café e expirava o nada contido em seu oco insone. Seu pedido chegou; o que para muitos pode ser considerado o desjejum pós noite, para ele, era apenas a próxima refeição do dia anterior. Enquanto comia, pensava em qual seria seu maior ato de covardia: adormecer sobre a estrela bussolar de mármore ou estar ali, sentado, tomando café com a alma de um longínquo ontem.

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