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Ceia de Cristo

Atualizado: 4 de mar. de 2021

Tudo estava atrapalhado naquele dia, saí de casa cedo, mas peguei engarrafamento, não achei lugar para estacionar, uma quadrilha de flanelinhas tentou me extorquir e no meio do caminho lembrei que havia esquecido o pote de merda em casa. Só havia pegado o de mijo. E ainda tinha o aparelho de som “5 em 1”, de última geração, comprado em dez vezes sem juros, que deu defeito depois de 24 dias de uso e eu tinha que aproveitar aquela maravilhosa manhã para leva-lo ao conserto para poder voltar a escutar meus concertos e os “sertanojos universitários” de minha filha. No laboratório a recepcionista me fez aguardar por quase uma hora com aquelas “encomendas” nas mãos, e uma estagiária me furou quatro vezes, atrás de minha veia bailarina. O Sol do quase meio-dia ameaçava rachar meu crânio e após o tal jejum mais a espera mais a ceia anoréxica oferecida pelo laboratório, meu estômago grudava nas costas de tanta fome. Procurei uma sombra para me esconder, mas nem a minha aparecia. Estava no centro da cidade, mais precisamente perdido numa rua, à procura da assistência técnica para levar o aparelho de som. Não conseguia achar o maldito lugar, todos me diziam: entre ali, vire à direita e vá, vá... vá. Eu ia, ia... ia e sempre chegava a lugar nenhum. Após uma labuta infernal, achei o tal lugar, fui super mal atendido e disseram que só após 30 dias o som estaria pronto. Sem opções, deixei o aparelho e saí, já tonto de fome. Louco por feijão, arroz, farinha, mas só achava lanchonetes com pãezinhos, pastéis e essas guloseimas rápidas. Parei por um instante, na expectativa de que aquela história de se alimentar de luz surtisse efeito, e neste momento um rapaz de terno preto, — naquele maldito calor — me entregou um panfleto Era a propaganda de um restaurante. Faminto, foi apenas o que consegui ler. Imediatamente, perguntei ao rapaz onde ficava o lugar, ele me explicou, e facilmente o achei. Quando cheguei à frente do local, olhei para cima e vi escrito: Restaurante Ceia de Cristo - O pão alimenta o corpo e Jesus a alma. — Jesus que me perdoe, mas eu vou ficar com o pão. — pensei. Assim que entrei, uma música alta — evidentemente gospel — louvava o Senhor, fervorosamente, quão o calor daquele dia, mas ela poderia louvar até os políticos de Brasília, Hitler, Panicats, o funk carioca ou o pagode baiano que eu comeria ali, de qualquer forma. O lugar parecia limpo, modesto e a comida cheirava bem. Depois de ler vários salmos espalhados por todas as paredes do local, enquanto fazia meu prato, e de escutar de todos os funcionários que passavam por mim: “Jesus te ama!” ou similaridades; sentei e dei de forma descontrolada e agressiva, minhas primeiras garfadas, o suficiente para meu estômago parar de lutar MMA. Fiz meu prato de forma eclética: carne de porco, carneiro, calabresa, galinha ao molho pardo, arroz, uma colherinha de feijão, pirão de mocotó e uma folhinha de alface, para dar aquela corzinha. Após acalmar os ânimos da fome, um simpático garçom, com um Jesus escrito na camisa, quase maior que a camisa, veio ao meu encontro e perguntou se eu aceitava algo para beber. — Água, refrigerante, suco, cerveja... — Cerveja?! Até que cairia bem agora, com esse calor desgraçado — pensei. — Prefiro uma cachaça! — respondi sarcástico, enquanto chupava um ossinho da galinha. Trocamos sorrisos e continuei a devorar meu eclético e evangélico prato. Nunca Jesus não me incomodou tanto! Minutos depois, chegou à minha mesa um copo pequeno e cilíndrico, contendo uma cristalina dose de cachaça. No rádio, uma voz berrava: LOUVAI, LOUVAI, LOUVAI O SENHOR! Assim o fiz, entornei de uma só vez aquela adocicada cachaça e disse: — Amém! Do outro lado o jovem garçom com Jesus atropelado na camisa, disse: — Assim seja! O senhor deseja outra?

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