Já passava das duas horas quando foi se deitar. Desde as oito, quando acabou de enxugar os pratos e anotou o que precisaria comprar para fazer o almoço de domingo, havia assistido dois filmes e lido trechos de alguns recortes jornalísticos que havia separado para ilustrar uma apresentação que faria nas próximas semanas. Foi um dia normal, um sábado como qualquer outro: atividades físicas e domésticas matutinamente, almoço em família, tédio vespertino e uma noite beirando o agrado de se fazer o que queria e tinha no menu de opções próximo a si.
Ao se deitar, não demorou a cochilar, desligou o ar condicionado e ligou o ventilador, pois, apesar do calor que se fazia naquela época do ano, ele não se sentiu incomodado, e o quarto já estava bastante resfriado. Sua esposa, feito pedra, roncava um som quase jazzístico desafinado. No início do sono, teve pequenos espasmos musculares, o que o fez despertar por algumas vezes; em seguida, começou a sonhar com peças teatrais que havia visto há muito. Uma delas, inclusive, foi na juventude. Uma peça que contava a história de um palhaço em depressão, apaixonado pela lona do circo, que seria trocada. Sonhou também que defecava uma quantidade tão grande, que entupia o bueiro do bairro, e todas as privadas começavam a jorra merda, até afundar o bairro, mas a real atividade da noite se iniciou quando começou a sonhar consigo, exatamente no ponto em que estava. Como uma espécie de projeção onde o espírito sai do corpo, mas, no caso dele, o preguiçoso do espírito estava inapetente e, em vez de dar um passeio, ficou por ali, vendo seu próprio corpo dormir. Entretanto não era isso. Já havia passado algumas vezes por essa experiência e sabia como se dava e as sensações que lhe causara. Certa época de sua vida, até se interessou pelo assunto e chegou a ler livros e assistir palestras sobre o Projecionismo. Desta vez, era algo mais denso, mais concreto, envolto num abstrato chumbada, como se o fio de prata fosse um fio de aterramento. Era o sonho dentro da realidade. Mais estranho que a ficção, porém normal como a realidade e acrescido de uma fina película de mensagem subliminar... de sobrenatural.
Na primeira vez que despertou, como quem desperta de um pesadelo, conseguiu ergue-se da cama num só solavanco, a ponto de ainda ver seu corpo próximo a janela e de se perguntar: “Acordei, realmente?”. As mãos começaram a formigar, e o calor, que antes não o incomodara agora iniciava uma lenta ação em suas carnes. Assim que passou o período de “alucinação”, do sonho, tomou plena consciência e acreditou que estava acordado, de fato, e não sonhando ou sonâmbulo. Uma sensação de iminência de algo errado o possuiu. Foi até as janelas e as portas e conferiu as trancas, conferiu o ronco desafinado jazzístico da esposa e ficou pensativo por alguns minutos. Retomou o sono interrompido e, segundos depois de adormecer, lá estava ele, recomeçando de onde parou, a par do seu corpo, quarto e tudo mais. Era uma angustia vertiginosa, entretanto, apaziguadora. Ele, agora, via-se sentado na cama, pensativo e tranquilo, incomodado e sutil. Despertou novamente num sobressalto, que fez a esposa remexer-se e afinar as trombetas nasais. Desta vez, não conseguiu ver-se após o despertar. Agora sua respiração era quase ofegante, seus sentidos pareciam mais aguçados, mas a sensação de tranquilidade e sabedoria também estava presente. Novamente, a sensação de mensagem subliminar ou iminência de que algo aconteceria o tomou. Foi até a janela do apartamento, abriu-a e olhou para baixo para ver se conseguia avistar seu carro. Ele estava lá. Olhou ao redor do condomínio, para ver se via algo suspeito, algum ladrão, alma penada ou suicida, mas nada. Fechou a janela, reaveriguou o ronco da esposa e foi até o quarto da filha, que também dormia tranquilamente, reconferiu todas as trancas das janelas e portas. Estava tudo na perfeita normalidade. Bebeu um copo de água, chupou uma lima e regressou ao quarto para tentar achar um melhor e mais calmo afago nos braços de Hipnos. Ajeitou o travesseiro, alisou a cama para tirar as ondulações do lençol, aumentou a velocidade do ventilador e deitou, amedrontado, sonolento e calmo. Minutos depois, já havia adormecido, e, pouquíssimo tempo após apagar, um zumbido crescente o acordou. Parecia um trem, uma cigarra, algo errado com o ventilador. Levantou, desligou o ventilador e religou para ter certeza da origem do barulho, agachou sob a cama e varreu o chão para ver se havia algum inseto que pudesse emanar tal sonido. Suas mãos formigavam, seu braço doía, sua nuca pesava e seu maxilar e ouvidos pinicavam. Suores brotavam de suas axilas e testa, mas não havia pânico, apenas a sensação de que algo aconteceria. Um acidente, um incidente, uma morte, um roubo, uma catástrofe, um, um... um algo que não sabia o que era. Acessou o celular para ver se tinha algum contato do WhatsApp on-line, com quem pudesse conversar; pensou em mandar mensagens de: “E, aí, tudo bem?”; pensou até em ligar para a mãe, para saber se estava tudo bem, mas se ela não tivesse morrido, certamente morreria com uma ligação àquela hora. Decidiu trocar o short do pijama por uma bermuda mais adequada, caso precisasse sair às pressas para socorrer alguém, em caso de algum acidente, ou mesmo, socorrer-se. Deitou já um tanto chateado pelo desconforto da situação, e, quando adormeceu, um flash de luz esfaqueou sua visão, como se um holofote fosse ligado e desligado rapidamente sobre suas vistas. Pulou da cama, ergueu os punhos, girou sobre o eixo de seu corpo procurando o que o ameaçara. Sua respiração era trépida, seu abdômen dançava, suas pernas tremiam, mas uma paz o peneirava. Ficou neste ballet de lutador atordoado por alguns minutos. Sabia que algo ia acontecer, só não sabia o quê! Tomou um banho, ligou o ar condicionado, beijou a testa da esposa, benzeu-se, mudou a posição de seu corpo sobre a cama, deitando com a cabeça para os pés da esposa e, finalmente, apagou-se num sono tranquilo, flutuante e pesado.
Já passava das dez horas da manhã quando sua esposa, ao voltar da caminhada, jogou a toalha molhada em seu rosto, como fazia de costume, para acordá-lo, mas ele não acordou. Estava morto, desde as três da manhã.