Seu Biga, figura ilustre da cidade de Muquiabá, no sul da Bahia, aos sete anos, abandonou a escola para ajudar o pai no trabalho, mas nunca mostrou desinteresse ou preguiça em aprender, principalmente a ler e a escrever, que aprendeu com sua avó, entre os batuques e ferramentas da pequena marcenaria do pai. Depois de adulto, ficou conhecido por seus serviços de qualidade e pelos causos e histórias que lia nos livros e contava à sua forma e também pelas poesias que recitava e cantarolava enquanto exercia seus mais diversos ofícios. Homem sábio e inteligente, durante toda sua vida de trabalho, sempre levava consigo, no meio das ferramentas, um livro, para na hora do almoço ler e partilhar com quem tivesse interesse. Era comum, em obras que trabalhava, ver a peãozada substituir a hora da sesta, por uma roda atenta à leitura ou contação de história de seu Biga. Seu amor aos livros lhe rendeu o merecido apelido de “Pedreiro Poeta”. Levava para casa todos os livros e manuscritos que encontrava ou lhe era concedido. Infelizmente achava grande parte dos livros nos lixos da cidade e das casas em que prestava serviço. Isso o deixava bastante triste, não entendia como as pessoas podiam se desfazer da sabedoria e sentimentos transcritos neles. Seu Biga continuou juntando livros até não ter mais onde colocá-los. Então, pouco antes de se aposentar por falta de força para o serviço pesado, construiu um vão no fundo de sua humilde casa para armazená-los. Aos poucos, o lugar começou a ser frequentado por pessoas de várias idades e classes sociais, que, em vez de jogarem os livros no lixo, agora os doavam e ajudavam na organização do lugar. Ele sentia-se realizado ao receber mais e mais livros e ver aquele lugar cheio de pessoas compartilhando o prazer e o saber por meio da leitura. Porém, com o passar do tempo, o fluxo de pessoas e as doações diminuíram, e os livros voltaram a ir parar nos lixos. Toda aquela movimentação inicial se mostrou ser apenas um frisson, causado pela novidade numa cidadezinha tão pequena como aquela. Ver as pessoas abandonando uma das poucas coisas da vida que tanto lhes dão sem nada cobrar machucava Seu Biga e causava-lhe um aperto no peito.
Debilitado devido à idade, passava os dia com seus livros e Nenéu, seu neto mais novo. Varavam as tardes em leituras regradas a chá e broa de milho, feitos por ele mesmo, que, com ajuda dos livros, tornou-se ótimo cozinheiro. Além do aprendizado culinário, seu Biga também, se tornou conhecedor – por meio dos livros e do conhecimento passado a ele, por seus pais – e até escreveu, de forma manuscrita em um caderninho, inúmeras receitas de remédios caseiros, feitos com mistura de ervas, raízes e grãos. Esse “livro” era um dos mais procurados na sua casa, e até o médico da cidade, Dr. Jacinto, recorria a ele quando faltava medicamento no posto de saúde.
Numa tarde fria, pressentindo algo, disse a Nenéu:
– Filho, não pare de ler como os outros. Se puder, mantenha o carinho que tem hoje pelos livros e por mim, pois se o homem continuar assim, sem respeitar o sentimento e a sabedoria escrita, não sei o que vai acontecer.
– Tá bom, vô. Mas vô... me diz uma coisa? O que vai acontecer com o livro?
– O futuro do livro?
– É, vô, lá longe. Bem longe – disse fazendo gesto de lonjura com as mãos.
– Eita! menino esperto e curioso, esse meu nêgo! – disse rindo, enquanto dava um cheiro em Nenéu. – Seu avô, apesar de ler bastante, não tem esta astúcia toda. O que sei é que, certamente, o futuro de quem leu livros e com eles aprendeu a gostar de aprender e os teve e os têm como companheiros para todos os momentos será bem mais bonito e menos solitário do que o de quem nunca os teve ou gostou deles – disse o velho Biga, antes de dar um grande suspiro e cerrar os olhos, adormecendo para sempre, tendo em mãos duas coisas que jamais iria esquecer e que mais lhes deram prazer em vida: o livro, recaído sobre seu peito; e o amor do seu neto que, por cima dele, ensaiava um cochilo.
Nenéu escutou seu avô e, até a vida adulta, manteve o local reservado aos livros no fundo da casa. Na primeira oportunidade que teve, conseguiu apoio político e da comunidade para transferir o acervo para um espaço maior e mais adequado, o qual foi a primeira e, até então, única biblioteca da cidade, que foi batizada: Biblioteca Bartolomeu Geronço dos Santos. Pouco frequentada, mas muito resistente e respeitada.