Quando Glauber acordou, já passava das sete da manhã. Levantou tranquilo, sem ressacas ou qualquer uma das mazelas típicas de um viciado em anfetaminas. Dormiu cedo, não estava a fim de balada ou noitadas extravagantes, apenas consumiu suas doses noturnas e escutou música, enquanto findava um trabalho sobre a oxidação de alimentos. Tomou uma ducha fria e pensou em ir surfar. O tempo estava bom, mas a iminência do fim de seus suplementos químicos o forçou a recusar o primeiro desejo. E, já havia avisado ao seu traficante que passaria por lá. Sim, “seu” traficante! Se há “meu” motorista, “meu” médico, “meu” marido e até “meu” ex, por que não haveria “meu” traficante? Eram anos de convivência respeitosa, acabaram virando amigos.
Glauber foi à padaria, a fim de comprar pães e outras guloseimas. A seguir, pegou sua moto e seguiu para o morro do Rambo, como era conhecido o morro Frederico Pontes. Depois de subir duas ou três vielas e ser aprovado, sob olhares de moradores e trabalhadores do tráfico, chegou à casa de número 27, uma construção malfeita de três andares, rebocos a mostra, cheia de grades e um emaranhado de fios. Após estacionar, Glauber parou na porta, enquanto cumprimentava Bexiga.
— Banguelo, entra pra avisar a Rapé que tem cliente esperano — disse Bexiga.
Depois de algum tempo, lá de cima, Rapé apareceu e disse: — Ô moleque! Cadê você? Sobe aí, de boa, parceiro velho. Banguelo! Desce a viela da 23 e ajeita o movimento lá! — ordenou lá de cima.
Glauber subiu as escadas, sem problemas, como se visitasse um amigo em um dos prédios da região nobre em que morava. Sentia-se à vontade, afinal, eram mais de quatro anos de um convívio respeitoso, profissional, debilitante e essencial. Repleto de promoções, indicações, fiados — sempre pagos — bebedeiras e cafés. Rapé era um traficante diferente dos demais, não usava nada da química que vendia nem fumava cigarro, apenas maconha do tipo Indica e charutos importados, mas era viciado num rapé desde criança — o que gerou seu vulgo. Do funk, gostava apenas das funkeiras; entendia o suficiente da língua inglesa para se comunicar basicamente com clientes gringos e entender algumas músicas; adorava óperas, MPB, rock e cafés. Tinha dentro do seu "local de trabalho" uma máquina de café espresso profissional, iguais as que se encontrava em shoppings, pela cidade. Tinha também um sistema de som incrível, que um cliente usuário instalou numa permuta lisérgica.
Assim que se avistaram, Rapé tomou o cuidado de desfazer-se de seu trabuco niquelado, colocando-o num canto, sobre a pia de inox. Glauber deixou os sacos no chão e, em seguida, se abraçaram.
— Ihh, moleque! Tempão, hein, arranjou uma delicatéssen melhor, foi? — disse rindo.
— Que nada, irmão, é tempo mesmo, a faculdade tá me sugando e da última vez levei um arsenal dos bons.
— Como é que vai as coisa?
— Tá tudo normal. Vim só pegar umas recargas, te trazer uns sons e tomar aquele café. Tá com tempo?
— Tô de boa, cabelo voa. Vâmo dar um grau aqui na mesa.
Enquanto Glauber tirava dos sacos: pães e brioches frescos, pasta de ricota, sequilhos de palmito e azeitona, Rapé deu uma rápida limpada na mesa e, em seguida, passou a operar a máquina de café, com todo cuidado e acurácia possível. Fazia café melhor do que muito barista de cafés chiques.
— Posso abrir? — perguntou Glauber, apontando para a geladeira duplex de aço inox.
— Pode sim, tá tranquilidade.
— Vou pegar mais algumas coisas aqui e pegar os pratos lá no armário.
— Já, já o café tá pronto. Vai querer “caputino”?
— Vou, mas faz forte e coloca naquela xícara longa.
— Boa pedida! Pode deixá.
Em pouco tempo, tudo estava arrumado, e eles, sentados.
— Coloca isso pra gente escutar — disse Glauber, dando a Rapé um CD.
Mordendo um pão com queijo Cuia, foi em direção ao seu poderoso aparelho de som. Fez alguns ajustes, retirou o CD de Tim Maia que estava dentro da bandeja e guardou-o na capa, colocou o CD que Glauber levara, pegou o controle remoto e retornou à mesa.
— É com você — entregou o controle nas mãos de Glauber.
Glauber apertou o play. Afghan Whigs ecoou com perfeição pela casa, e o café começou, sem segundas ou terceiras impressões, sem medos, retoques ou máscaras sociais.
— Porra, moleque. Isso é gostoso demais. Fissurei na parada!
— Quando vier da próxima vez, vou trazer mais novidade pra você. Consegui umas bandas de rap lá da Turquia. Você vai curtir.
— Porra! Você é foda!
Eles comiam e conversavam enquanto escutavam música. Glauber era um dos responsáveis por apresentar coisas desconhecidas a Rapé, eles interagiam bem. Enquanto falavam de negócios, Rapé resmungou: — Pô, moleque, eu gasto demais comprando os polícia. Eles se multiplicam, hoje você tem dez em sua lista, amanhã tem trinta. É foda!
Depois de uns 40 minutos de diálogos e gastronomia matinal, Rapé voltou a colocar seu niquelado na cintura, lavou as mãos e voltou do quarto com um pequeno embrulho: a encomenda de Glauber.
— Tá tudo certo, o que deixou da outra vez, quita isso aí, e ainda tem um brinde pelo café da manhã e a resenha. Depois você me fala se curtiu.
Rapé nunca permitiu uso, de fato, em suas dependências, somente uma breve degustação técnica para novatos ou aquisição de grandes quantidades para aprovação da qualidade do produto. Eles se despediram com um abraço e continuaram seus cotidianos. Rapé tinha que providenciar uma nova rota para receber mercadorias, e Glauber partiu em direção ao café Glacê, onde já estavam Beto e Lene, cada um com uma xicara enorme de café. Beto ainda parecia chapado da noite anterior, com olheiras enormes roxeadas, já Lene estava efusiva, linda. Seus cabelos negros acastanhavam-se com o sol que invadia a vitrine.
— De que vamos? — disse Glauber se sentando, jogando seu corpo sobre os companheiros.
— O de sempre, meu caro! — respondeu Lene mexendo o café com um canudo mastigado.
— Maíra! — gritou Glauber.
A garçonete magra de olhos azuis quase saltantes das órbitas se deslocou em direção a mesa, já com o bule de café fumegante e uma xícara de asa rachada em mãos. Ela encheu a caneca de Glauber e completou as outras. Em agradecimento, Glauber beijou sua mão, deixando um papelote de vida morta. Maíra sorriu, enquanto guardava o mimo no bolso do avental. Lene abriu a sacola e tirou dela uma lata de sequilhos amanteigados sortidos, que deixou a disposição de todos na mesa. Maíra pegou um, piscou um olho e foi atender um obeso, que todas as manhãs comia três pães com ovos e bacon, fritas, Coca zero e, depois ia ao banheiro cheirar cocaína.
Eles conversavam trivialidades, Lene reclamava que teria que trabalhar no próximo sábado, Glauber comentava a visita à casa de Rapé, já Beto, dizia estar sem grana e que sumiria por uns dias pra consegui-la, fazendo bicos de entregas com um tio. A conversa se desenvolvia, o tempo passava, a vida lhes agarrava, e eles a esfolavam em sensações e entregas aos momentos. Um a um, eles iam ao banheiro e voltavam nas nuvens do céu infernal de si. Nunca deram trabalho ao dono do estabelecimento. Eles apenas sentavam e eram felizes, aos seus modos, sem escândalos ou problemas. No máximo, uma demora em sair do banheiro ou uma conversa mais exaltada, logo acobertada ou sinalizada por Maíra. Aquela mesa, que ficava no fundo do café Glacê, ao lado da parede do banheiro e em frente a um grande vidro que dava para um jardim mal cuidado, porém florido, era deles. Sentavam ali há mais de quatro anos, várias vezes por semana. Ali, trocavam confissões, drogas, dicas, choros, risos e sensações e, consumindo café, sequilhos amanteigados, panquecas, hambúrgueres e anfetaminas, o mundo era um lugar melhor.