Norato, 65 anos, três filhas, uma neta, casado há 29 anos com Laiara e um dos donos de uma empresa de produtos agropecuários, que montou, após se aposentar, por meio de uma repartição pública, como servidor ilibado e respeitado. Tinha uma boa vida: casa própria e de veraneio, carro novo e alguns velhos e bons amigos, porém, nos últimos, anos começou a passar por algo que chamava de “crise social da maturidade”. Não tinha mais paciência com absolutamente nada e ninguém; não ia à empresa com frequência, praticamente largando-a nas mãos das filhas e dos sócios; deixou de fazer suas caminhadas matinais e de encontrar os amigos para jogar cartas e xadrez. Os amigos, como bons amigos, também não o procuravam e ficavam meses sem se verem. Desconexo, com sua insociabilidade, começou até a fumar. Passava horas tomando uísque e fazendo sudoku no fundo dos bares e, a cada golada, parecia esperar algo que não chegaria. O afastamento familiar foi inevitável e gradual, como um porre às duas da manhã para quem sentou ao bar, às 20h. Desenvolveu uma espécie de repulsa de Laiara, com quem morava sozinho. Simplesmente não conseguia a olhar ou permanecer por muito tempo no mesmo cômodo que ela. Usava as mais variadas desculpas para justificar sua ausência contínua. Dormia no escritório, antigo quarto de uma das filhas ou na sala; fazia as refeições em horários diferentes; sentava na poltrona em vez do sofá de quatro lugares; e, quando Laiara adormecia, explorava a casa feito um adolescente quando os pais viajam. Eles eram opostos, mas resistiram e pareciam felizes. Laiara, moça de boa família, sempre foi dada a fricotes e frescuras. Era para ter casado com um rico fazendeiro, mas se apaixonou por um agrônomo trabalhador, que gostava realmente da terra e não era dado a frescuras. Já estava acostumado com os modos e manias da esposa, mas agora tudo o incomodava. “A carne aumentou de novo, daqui a pouco não vamos poder comprar um bom filé”, “Tire o pé do sofá, lavei o forro hoje”, “Para de roncar!”, “Você acha melhor cortina azul celeste ou azul bebê?”, “Vai sair com essa camisa?”. A inquietude e a impaciência chegaram como visita que chega de mala e cuia.
Norato, buscando novas atividades e algo que lhe trouxesse um pouco de paz, começou a frequentar bibliotecas, shoppings, cafés e retomou o gosto pela leitura, que havia perdido ainda jovem. Devorava todo e qualquer tipo de livro de autoajuda na tentativa de encontrar uma solução ou, ao menos, explicação para aquela frieza borbulhante que passou a sentir pela vida. Comprava todos os livros com a temática e os lia, ali mesmo, ou em cafés, bancos de praça, no playground do prédio ou nos cantos da casa. Lia e repassava. Vendia ou os trocava ainda novíssimos, pois não queria que a mulher soubesse o que andava lendo ou procurando. Após diversos livros de autoajuda, finalmente resolveu, de fato, ajudar-se e começou a fazer terapia, com consultas semanais. Todas as quintas às 17h, lá estava ele no divã. Teve bastante dificuldade para iniciar as sessões e se abrir. Queria todas as respostas possíveis e imediatas. Meses se passaram e, aliado a terapia, conjugou meditação e yoga. Aprendia pouco a pouco a desvendar os mistérios da mente e a controlar sua chama e poder. Gradativamente, sentia melhora, seu aspecto parecia mais jovial e viçoso. Passava parte do dia escutando música new age e de meditação, comprou até um player portátil, sob os olhares desconfiados da esposa, “Que ridículo. Isso é coisa de jovem!”. Ele já conseguia até sentar no mesmo sofá que Laiara, era só fechar os olhos e imaginar que ela não estava ali, falando pelos cotovelos e joanetes. A meditação, yoga e outros meios de elevar-se passaram a ser parte fundamental do cotidiano de Norato. Enquanto Laiara reclamava do vento, ele mergulhava em belíssimas cachoeiras e corria em campos de girassóis mentais
No domingo de Páscoa, como já era praxe, Laiara organizou o mega almoço, com todos os familiares reunidos e frescuras desnecessárias. Casa cheia, as três filhas, genros, cunhados, amigos, penetras, netos, etc. Neste dia, Norato já acordou meditando, tomou um banho que durou uns 40 minutos e pensou em inventar uma desculpa para cair fora, mas prometeu a si mesmo e a sua psicóloga que iria enfrentar a situação. Seria uma prova de fogo. Vestiu-se e sentou-se na sala para aguardar os convidados. Pouco a pouco, os convidados foram chegando, e a casa, enchendo. À medida que isso acontecia, ele ficava mais ansioso e nervoso, mas sempre buscando auxílio nos exercícios respiratórios. Na hora do almoço, foi bem mais tranquilo. Todos comeram felizes, com a boca cheia de boa comida, não se fala. Escutava-se apenas os tilintares dos talheres e copos, algumas bobagens e elogios ao banquete de Laiara, que na verdade foi feito por Dona Hidelina, a cozinheira de longos anos. Após a fartura, foi que as coisas se complicaram. Uns se sentaram na varanda, outros ao redor da televisão, na cozinha e até nos quartos tinha gente. Um frenesi ululante de conversas artificiais começou a brotar e a se espalhar: Faustão... Páscoa... dinheiro... Jesus... filhos... netos... política... futebol... novela...
“Você está calado Norato”, comentou alguém, entre as dezenas de vozes.
“Agora só anda assim, com esse negócio no ouvido, parecendo um velho retardado”, disse Laiara, fazendo menção ao seu player portátil.
Todos riram. Na cabeça de Norato, ecoava: “Velho retardado... babão”. Ele suava horrores, as marcas de suor brotavam da testa e mãos e transparecia na camisa nova, que sua filha havia lhe dado. Aumentou o som e escutou a voz adocicada da professora de yoga: “Relaxe... feche os olhos... inspire e expire lentamente... você é só energia... sinta a luz emergindo de dentro de seu corpo... escute o som da paz.”.
Alguém ligou o som, e uma música da moda começou a percorrer todos os cantos, sobrepondo, inclusive, a meditação que saía dos fones de Norato. “Calma!”, ele pensava, enquanto respirava e suava. Ele aumentou todo o volume do player: “... sua vida é uma dádiva... você se ama... repita comigo: eu me amo... você é uma borboleta... leve e colorida... uma linda e livre borboleta, com asas perfeitas e gloriosas...”.
Aos poucos, Norato conseguiu relaxar, o som externo foi gradativamente desaparecendo, e o suor em sua pele diminuindo. Percebeu que seu corpo era friccionado para frente como se uma almofada tivesse sido colocada em suas costas, uma sensação leve e gostosa lhe percorria. Finalmente, brotou um leve sorriso de seus lábios, olhou para suas mãos, que já não suavam mais e seus dedos estavam finos assim como seus braços e pernas. Pareciam gravetos feitos apenas de pele e osso. De seus ombros, um calombo por baixo da camisa anunciava o nascimento de algo maleável, grande e macio como seda. O volume crescia pressionando a camisa, até que ela se rasgou e enormes asas de cores vivas abriram-se em suas costas, dando-lhe uma sensação de nirvana. Suas sobrancelhas cresciam em pelos rijos e brilhantes. Seu tronco parecia mumificado, porém cheio de vigor, de um marrom envernizado que emanada luz própria. Seu odor era de natureza, como casco de uma árvore e sua visão tornou-se arredondada e global. Ele podia ver todos os cantos da casa, em cores incríveis.
“Sim, eu consegui!”, pensou Norato. “Sou uma imensa, livre e bela borboleta.”. Quando fez menção de bater asas e sair voando, todos se assustaram, gritaram apavorados, alguns boquiabertos sem crer no que viam.
“Vovô virou totoleta”, disse sua pequenina neta.
“O que é isso minha Nossa Senhora!?”
“Eu falei que ele estava estranho!”
“Eu nunca vi nada parecido. Tira foto!”
O burburinho era geral, todos os convidados se concentravam em torno da sala, de olhos fixos e arregalados, em Norato, que levantou voo, circulou por toda a sala sobrevoando todos. Do teto, não conseguia escutar muita coisa, só sons da natureza, nada de carros, buzinas, falácias, TV, rádio. Nada! Apenas a natureza, da qual agora fazia parte. Laiara pegou uma vassoura e tentou rebatê-lo, sem sucesso.
“Velho imprestável”, dizia enquanto sacodia a vassoura no ar.
Norato voava rapidamente dando rasantes nas cabeças dos convidados, a cada rasante uma gritaria ecoava.
“Peraí, seu imprestável, que eu já sei o que vou fazer!”, disse Laiara, encostando a vassoura e saindo da sala, rapidamente.
Ela foi até o quarto de entulhos, onde, também, era guardado pequenos estoques do negócio de Norato e apanhou uma lata de pesticidas para gafanhotos. Foi até a cozinha, pegou uma antiga bomba borrifadora de inseticida, encheu-a e seguiu para a sala. Assim que entrou, começou a borrifar o veneno. Inicialmente, Norato não se abalou e continuou a dar rasantes sobre as cabeças dos convidados desesperados. Depois de despejar todo o conteúdo no ar, todos já estavam tossindo, de olhos vermelhos e narizes tampados, mas Norato conseguiu ganhar a varanda, rasgou a rede de proteção ganhou o céu, para ser finalmente livre, como sempre quis ser, após o início de sua “crise social da maturidade.”. Devido a exposição ao veneno, ficou um pouco tonto, pairando no ar, tentando se equilibrar, avistou a varanda cheia. Todos lhe olhavam, e Laiara esbravejava, gesticulando com os braços e todo o corpo. Um vento mais forte lhe alcançou, e Norato acabou desmaiando, caindo como uma folha de outono com cores lindas, no ar. Caía ziguezagueando, como se dançasse uma valsa com o vento — pra lá e pra cá — até que se espatifou, no chão de mármore do playground. Hoje, há quem diga que, naquele domingo de Páscoa, Norato prestou uma fervorosa homenagem a Kafka ou se suicidou.