Marli, casada há cinco anos, sempre teve um desejo imenso de ter um bebê, e tratava de conversar diversas vezes com o marido a respeito, o qual mudava de assunto e desconversava quando isso ocorria. Não era por falta de tentativas, ao menos, do que logicamente leva uma mulher a engravidar. Ele com 35 anos e ela com 21, tinham uma vida sexual absolutamente normal, como um casal recém-casado, exceto pelo último ano, no qual o esposo andava com um comportamento estranho dentro de casa, já não comparecia com seus deveres de marido com tanta frequência e quando o fazia, era sem virilidade e vontade. O ato se transformara por muitas vezes em algo mecânico, sem prazer e amor por parte dele. Marli, desconfiada, começou a reclamar sobre a situação e ameaçava largar Jaime, caso a estivesse traindo. Ele jurava de pé junto que não a traía, e que não havia mudado de forma alguma o seu comportamento dentro de casa. E foi justamente neste período, num desses atos mecânicos, sem amor e prazer que Marli engravidara. Até o quarto mês de gravidez ficou contentíssima, e por hora, até o marido "modificado", tornou-se mais amoroso, atencioso e compreensível às vontades e caprichos da mulher, mas não voltou a ser exatamente como era, agia como se algo realmente o incomodasse. Após o quarto mês, quando passou a engordar dia após dia, a ter dores insuportáveis, manchas pelo corpo, cólicas noturnas e pés inchados, passou a detestar seu estado de gravidez e chegava a dizer que se arrependera de tanto ter desejado um filho.
Isso foi até o final da gravidez, pois depois que Nara nasceu — nome escolhido pelo pai — a situação piorou. Marli, simplesmente, não queria conta com o bebê, não amamentava, não cuidava, nem mesmo as coisas essenciais como banho e trocar fraldas, ela conseguia ou queria fazer. Levada ao médico, foi diagnosticada, com depressão pós-parto. Recusando-se a fazer qualquer tratamento, passava os dias absolutamente longe da pequena Nara, chorando e lamentando as estrias, celulites e os mais de 20 quilos que ganhara durante a gravidez. Nara era criada basicamente pelo pai e babás, já que o casal não tinha família por perto para ajudar.
Uma noite, a babá não pôde comparecer ao serviço, pois a chuva inundou parte da cidade, impossibilitando o trânsito de muitas pessoas. Jaime também não podia abandonar o posto de trabalho, então ligou para casa e pediu, por tudo que fosse sagrado, que Marli tivesse compaixão, pela criatura que ela tanto desejou e pôs no mundo. Pediu para que apenas a olhasse e alimentasse, pois assim que pudesse estaria em casa. Com cerca de três horas de atraso, devido aos problemas causados pela chuva, Jaime chegou e encontrou a criança com fraldas sujas e chorando bastante, enquanto Marli estava no quarto dormindo. Em desespero, pegou Nara, trocou-lhe a fralda e deu-lhe uma mamadeira rápida. Em seguida, foi em direção ao quarto e arrancou Marli da cama aos solavancos.
— Você está louca?! Isso vai acabar agora, essa sua loucura, seu comportamento já deu o que tinha que dar. Você foi incapaz de alimentar e dar banho na sua própria filha, isso é o cúmulo, você vai para o inferno sua desgraçada. Você desejou tanto essa criança e agora faz isso, a maltrata desta forma. Eu nunca pedi esta criança, mas a trato com todo amor... Da melhor maneira que posso — disse Jaime incontrolável, segurando-a pelos cabelos e berrando.
— Eu quero que essa criança morra! Eu odeio essa criança, isso não é minha filha, isso não saiu de dentro de mim, isso me transformou num monstro gordo cheio de dores e estrias. Essa criança acabou com nossas vidas, ela destruiu nossa vida, ela destruiu...
A fala desvairada de Marli foi interrompida por um tapa que partiu-lhe a cara e alguns dentes e em seguida, jogou-a contra a parede. Jaime avançou sobre ela, montando-a, segurou seus cabelos e incontáveis vezes, com as duas mãos bateu a cabeça dela contra o chão até cansar e ela parar de gritar. Marli permaneceu no chão, com a parte traseira do crânio dilacerada, e de sua boca brotava bolhas de um sangue escuro, que estourava, e em seguida se formava novamente, enquanto saia de seus lábios um sufocante e quase inaudível “eu odeio... odeio...”. Jaime levantou-se, embreado de sangue nas mãos, pegou a filha que chorava no berço, fez-lhe um afago por alguns minutos, fazendo-a parar de chorar e em seguida dormir. Colocou-a no berço, pulou o corpo de Marli, estendido na porta do quarto, pegou uma pá e um escavador na casa de ferramentas, localizada no quintal, e dispôs-se a cavar uma cova ali mesmo no fundo do quintal, num cantinho, numa parte quase que esquecida por eles, onde só havia uma vegetação rasteira e alguns entulhos. Passou duas horas cavando o buraco. Em seguida arrastou Marli por uma das pernas até o local e ali mesmo sepultou-a de sua vida, sem cerimônias, sem extrema unção e sem remorsos. Limpou toda a casa, tomou banho, tirou a filha do berço e dormiu com ela por sobre o peito na sua cama de casal, agora solteira.
Nos próximos anos Jaime foi um dos pais mais cuidadosos e carinhosos que podia existir, cuidava de sua filha com todo amor que lhe faltara por parte de mãe. Casou-se de novo e teve uma completa família feliz. Sua nova esposa tratava Nara como se fosse realmente sua filha. Vinte anos depois, numa tarde comum como todas as outras, uma batida mais forte na porta, causou espanto à família que estava em casa. Ao abri-la, Jaime se surpreendeu.
— Jaime da Cunha Nascimento?
— Sim. O que houve?
— Nara Cunha Marinho é sua filha?
— Sim, mas o que houve?
— Temos um mandado, recebemos uma denúncia de tráfico de drogas nessa casa e precisamos verificar — disse o policial mal encarado, já adentrando na casa.
— Mas não pode ser, aqui só mora eu minha esposa e filha...
— É o que vamos ver!
Depois de vasculhar toda a casa, realmente nela nada encontraram, mas no quintal... Lá num cantinho, numa parte quase que esquecida por eles, onde só havia uma vegetação rasteira e alguns entulhos, foram encontradas dezenas de pés e sementes de maconha, além de trouxinhas já prontas para consumo e venda. Após essa descoberta, houve a necessidade de vasculhar ainda mais todo o terreno, em busca de mais drogas e artefatos do tráfico, mas foi a polícia que teve uma surpresa. Encontraram sob os pés de maconha, um corpo, ou melhor, a ossada de uma mulher de aproximadamente 20 anos, que devia já está enterrada há muito tempo — era Marli.
Aquilo trouxe a desgraça daquela família. Pai e filha presos, julgados e condenados Jaime por homicídio e ocultação de cadáver e Nara por tráfico de entorpecentes. A madrasta, depois de muita explicação, provou sua inocência. Quanto a Marli, ou ao que sobrou dela, foi devidamente sepultada. Quem viu a ossada, disse que ela parecia sorrir.