Manhã chuvosa, como todas as outras daquela semana, o dia chegou cinzento, com o ar misturado ao dióxido de carbono expelido pelos automóveis. Acordei, depois de colocar o despertador na soneca por três vezes, — quem foi desocupado que inventou esta função? — até despertar subitamente com um fiozinho de baba gelada escorrendo pelo lado esquerdo da boca e uma película de mingau das almas cobrindo meus lábios e nublando o céu sobre a língua. Descalço, pisei no chão frio e imediatamente o nariz ardeu e coçou. Fui ao banheiro e sentei na privada para urinar — não sei por que, mas sempre urino sentado, pela manhã. Eu não acredito que haja gênero sexual ao se acordar. Ninguém acorda homem, mulher, travesti, trans, ou seja lá o que for. Ao levantar, somos apenas uma massa molecular tentando despertar e sem qualquer definição; após um banho e uma xícara de café, passamos a assumir quem somos. Encarei um banho, após passar por todo um ritual, de deixar a água escorrer, molhar os pés, braço esquerdo, barriga, bunda e depois todo o corpo. Tomei um gole de café preto, me arrumei e saí. A chuva que caía era quase imperceptível, bem fininha e não fazia frio, na verdade só um ventinho, até muito gostoso. Demorei uns 15 minutos até pegar o ônibus, que estava cheio e com um cheiro fortíssimo de naftalina, proveniente dos casacos retirados dos armários — em Salvador, caiu uma aguazinha, se pensa que está na Rússia. Durante o percurso extremamente lento, devido ao engarrafamento, a chuvinha se tornou uma chuvona, com direito a trovões e raios. Todos fecharam as janelas, o que gerou um ambiente híbrido, com os mais variados odores: cosméticos, creme de cabelo, C.C., murrinha de roupa suja, chulé, mau hálito, etc. Uma suruba respiratória, propícia à disseminação dum vírus modal.
Quando desci na estação final, a LAPA, — um dos imóveis de Satã alugados à Prefeitura da cidade — a chuva era de pingos grossos, barulhosa e assustadora. Os vendedores ambulantes mais oportunos — talvez estudantes de meteorologia —, já mercavam aos berros, às 06h40m da manhã:
— Guarda-chuva 10 reais! Mete mão! Mete mão!
— Um absurdo! — disse uma senhora.
Realmente, ninguém queria desembolsar essa quantia às 06h40m da manhã de um dia chuvoso às vésperas de um feriado. Quem não tinha sua velha sombrinha ou guarda-chuva, permaneceu ali, sob as marquises e pontos de ônibus de braços dobrados e encolhidos, aguardando a chuva dar uma trégua ou o vendedor abaixar o preço. Mas não aconteceu nem uma coisa nem outra. Depois de 36 minutos esperando a chuva passar, em vão, resolvi conversar com o vendedor, que depois de muita labuta me convenceu a pagar não os R$10,00, mas R$7,00, em sua mercadoria, que era o último lançamento.
— Todo reforçado, freguês, esse aqui é qualidade. Não vendo porcaria, não. Esse aqui é 16 aros.
— 16 aros!? — perguntei com espanto.
— É sim, pode contar — disse apontando para os ferros da armação do produto, mostrando sua matemática. — Dois, quatro, seis, oito, mais oito do outro lado, dá: 16.
— 16 aros... — repliquei mentalmente. Aquilo me soou mágico e confiável. Então, sem pena e como quem adquire um objeto importante, comprei meu guarda-chuva de 16 aros. Eu nem sabia o que significava aquilo, apesar da explicação categórica do vendedor, mas não importava, eu ia seguir enquanto os outros ficariam ali, encolhidos e esperando a chuva passar. Há quem tenha 4X4 e câmbio automático, eu havia conseguido 16 aros!
Subindo a ladeira fedorenta habitada por mendigos, ratos, “sacizeiros” e pequenos criminosos, adjacente à LAPA e, que dá acesso ao local em que trabalho, havia um pequeno desfile de guarda-chuvas de vários tamanhos e cores, mas certamente, pouquíssimos deviam possuir os tais 16 aros e uma estampa quadriculada exclusiva, combinando com o período junino vigente. Ainda estava com a etiqueta — fiz questão de deixa-la —, que em alguma língua oriental, devia informar sobre os 16 aros. Nem o Katrina poderia me vencer. Feliz da vida, ombros e cabeça sequíssimos, segui firme pela íngreme ladeira. Quando cheguei ao seu topo, próximo a virar a esquina, um vento “seminoroeste”, sorrateiro, ríspido e furioso, veio de encontro a mim. Inicialmente apontei o guarda-chuva em sua direção, para evitar os respingos que trouxe consigo e que golpeasse a minha marquise particular pelo calcanhar de Aquiles — a parte côncava. No início funcionou, mas eu não conseguia andar, devido a sua força sobre a parte convexa. A coisa foi piorando minhas forças se esvaindo, o cabo molhou e foi escorregando entre os dedos. Eu encostei-me à parede, na tentativa de reforço, mas uma lufada de vento invadiu o espaço entre o guarda-chuva, a parede e eu. E com uma força sobrenatural e absolutamente natural à situação, ergueu meu guarda-chuva, invertendo a estampa e convertendo-o em uma espécie de Tulipa arquitetônica contemporânea. Com os braços suspensos lutando contra aquilo, eu não resisti e num golpe único, meu objeto de desejo e salvação, se esgarçou e dilacerou por completo. Subiu aos ares como um foguete metálico e na descida se transformou, lentamente, num bola de aros decorada com uma estampa quadriculada. Quando tocou o chão, rolou ladeira abaixo ferozmente, atacando as pernas de alguns passantes, até jazer sob as roda de um ônibus que passou em alta velocidade. Quando dei por mim, eu, que antes tinha ombros e cabeça secos e me sentia tão seguro e confiante sob a proteção dos 16 aros, estava ali, feito uma estátua abandonada, mal tratada, encharcada e ciente de que, 16 aros não servem pra nada!